segunda-feira, janeiro 21, 2013

O "Big Brother" visto de Itália

Grande Prémio de Cannes/2012: grande filme italiano sobre as monstruosidades do formato Big Brother, Reality é também um apelo à reflexão sobre um dos aspectos mais sinistros da televisão contemporânea — este texto foi publicado no Diário de Notícias (18 Janeiro), com o título 'Horrores do nosso quotidiano'.

De que falamos quando falamos de “reality TV”? O que está em causa quando falamos de programas como o Big Brother e seus derivados? Um discurso demagógico, enraizado no próprio imaginário desses programas, tenta há muitos anos mascarar a gravidade das questões em jogo: apenas um “divertimento” sem consequências (e, para mais, o nível de audiências garante os lucros de quem produz, difunde e publicita). Em boa verdade, estamos perante um dos sectores mais degradados da televisão, não apenas promovendo o esvaziamento mental de personagens e espectadores, mas também reduzindo o factor humano a um item irrelevante, para usar e deitar fora.
O filme Reality, de Matteo Garrone, mostra a violência moral e simbólica de tudo isso. E o simples facto de o fazer envolve uma lição exemplar: a preocupação com os efeitos perniciosos da “reality TV” não é um cavalo de batalha de alguns críticos de televisão e dos media. Nada disso. Vindo de um cinema italiano que não desiste de reflectir sobre o presente do seu país, Reality é o testemunho muito palpável de uma visão (europeia, hélas!) empenhada, não em demonizar a televisão, mas sim em recusar qualquer complacência com os seus horrores quotidianos.
Nesta perspectiva, Garrone é um legítimo e brilhante herdeiro de um cinema que, de Federico Fellini a Mario Monnicelli, passando pelos muito esquecidos Dino Risi ou Luigi Comencini, sempre nasceu de um amor, radical e paradoxal, pela Itália. As personagens de Reality vivem, afinal, uma das maiores tragédias contemporâneas: a de serem sugadas pelo mais torpe imaginário televisivo, nesse processo desleixando a sua dignidade e, no limite, alienando a sua identidade. Este é, por isso, um filme genuinamente político, até porque lida com questões que a maioria da classe política, lá como cá, recobre com o seu lamentável silêncio.