sábado, janeiro 19, 2013

A guerra íntima de Kathryn Bigelow

Com Zero Dark Thirty, Kathryn Bigelow coloca-se (e coloca-nos) no centro de uma vertigem onde vida e morte se tocam num enlace perturbante — este texto foi publicado no Diário de Notícias (16 Janeiro), integrado num dossier que também incluía uma análise assinada por Eurico de Barros.

Quem é a mulher, de nome Maya, que Kathryn Bigelow filma em Zero Dark Thirty? Em boa verdade, pouco sabemos da verdadeira personagem (mesmo o nome é falso). Mas a sua trajectória está longe de ser banal ou indiferente, ultrapassando os limites estreitos das descrições mais ou menos especulativas (a pose, os saltos altos, etc.) que começaram a circular sobre o seu modo de vestir. Maya é um segredo bem guardado pelos serviços secretos americanos: como uma das principais responsáveis pela investigação da CIA que conduziu à localização do refúgio de Osama Bin Laden, ela encarna as memórias, os traumas e as interrogações de toda uma nação marcada pelos atentados de 11 de Setembro de 2001.
Daí a dificuldade de definir Zero Dark Thirty como um típico filme de guerra ou um thriller (título português: 00:30 Hora Negra). Por um lado, é verdade que a composição de Maya, que já valeu a Jessica Chastain um Globo de Ouro (e uma nomeação para o Oscar de melhor actriz), joga num registo de desconcertante ambiguidade, apresentando-a como uma heroína cuja dimensão feminina desafia estilos de poder tradicionalmente associados aos homens. Por outro lado, através da sua aparência quase documental, o filme evolui no sentido de formular algumas questões muito íntimas sobre as práticas da guerra, o seu enquadramento ideológico e, em última instância, a identidade americana pós-11 de Setembro.
Não admira que Zero Dark Thirty esteja a ser recebido nos EUA através de um amplo debate, não apenas sobre as estratégias militares e a utilização da tortura, mas também o lugar e o papel da nação americana num tempo em que persistem as mais diversas ameaças terroristas. Não é exactamente um filme que procure esse debate como uma espécie de “suplemento” político. Nada disso: o núcleo da sua narrativa (a descoberta da residência secreta de Bin Laden em Abottabad, Paquistão) fazem com que Zero Dark Thirty pertença a uma conjuntura em que a acção de Maya transcende, e muito, o âmbito específico dos serviços secretos. Num artigo da Newseek (24 Dez. 2012), Daniel Klaidman destacou isso mesmo: “Será que ela exorcisou os seus demónios? Conseguirá libertar-se da marca da ‘guerra para sempre’? Estas perguntas são, afinal, tanto sobre Maya como sobre a América.”
A importância do olhar feminino não é estranha à obra cinematográfica de Bigelow (ela que, em 2010, foi a primeira mulher a receber o Oscar de melhor realização, graças a Estado de Guerra, sobre a guerra do Iraque). Há mesmo na sua filmografia um título, Blue Steel/AçoAzul (1989), com qualquer coisa de premonitório: aí se encena a tragédia de uma mulher-polícia, interpretada por Jamie Lee Curtis, que se torna objecto de fixação de um psicopata. Pelo tema e pela ambição, Zero Dark Thirty é bem diferente, mas reflecte essa qualidade essencial, referida pela própria Jessica Chastain ao receber o seu Globo de Ouro: Bigelow sabe filmar personagens de mulheres que escapam, ponto por ponto, às convenções de muitos olhares masculinos.