segunda-feira, dezembro 17, 2012

No país do "Câmara Clara"

REMBRANDT
Auto-retrato
1659
O fim anunciado do Câmara Clara (RTP2) não pôde deixar de desencadear as mais diversas reacções. Resta saber se é possível pensar a televisão em Portugal apenas a partir da presença (ou da ausência) de um determinada programa — este texto foi publicado no Diário de Notícias (9 Dezembro).

Também eu fiquei desiludido com o anúncio do fim do programa Câmara Clara (RTP2). Para além das interpretações que a notícia tem suscitado, não posso deixar de partilhar o desencanto de intervenções como a de Vasco Graça Moura (no DN), sublinhando a importância de contrariar “a tendência fatal das televisões generalistas para a imbecilização colectiva”. Atentas à pluralidade da produção artística, as emissões apresentadas por Paula Moura Pinheiro provam, afinal, que é possível conversar em televisão sem favorecer uma crispação banalmente futebolística.
Ainda assim, não participo das atitudes de protesto “militante” sobre o fim do Câmara Clara. A questão de fundo é, para mim, radicalmente política: tem a ver com o modo como discutimos os valores que configuram o espaço social. Creio mesmo que há um penoso equívoco em defender seja o que for porque é “cultural”, opondo-o àquilo que não é “cultural”: temos um défice imenso de reflexão sobre a mediocridade galopante da “reality TV” (Big Brother e afins) e o poder normativo de algumas ficções (telenovela e seus derivados), já que quase todos consideram que tudo isso... já não é “cultura”.
A clivagem que está em jogo passa por aí (e não tenho dúvidas sobre o carácter minoritário do meu discurso). A meu ver, importa reconhecer que não há nada mais cultural que as monstruosidades televisivas todos os dias injectadas na imaginação e no imaginário dos portugueses. Porquê? Porque através delas se impõem valores sobre a forma como nos representamos, as histórias que partilhamos e os modelos de relação (profissional, conjugal, sexual) que estabelecemos. A cultura envolve uma permanente guerra de valores, não é um território apaziguado em que “consumimos” uma bondade redentora, superior às convulsões do mundo à nossa volta.
Genericamente, esta visão “purista” e “purificadora” da cultura continua a ser sustentada por um nostálgico e exangue imaginário de esquerda que a direita, enquistada na inanidade de pensamento a que chegou, vai reproduzindo com despudorada perversidade. No seu esquematismo, este é um discurso que satisfaz as boas consciências, de todos os quadrantes.
Claro que é triste que desapareçam programas empenhados em respeitar a inteligência dos seus espectadores. Mas o fundo do problema está nos que ficam, nesses que todos os dias, nos horários nobres, impõem a sua formatada mediocridade, promovendo a degradação galopante dos “outros” valores televisivos. Celebrar livros, filmes, músicas ou peças de teatro não basta para pensar a televisão. Importa perguntar, por exemplo, se podemos esperar que uma população maioritariamente formada a ver telenovelas (há mais de 30 anos!!!) se possa interessar pelos outros objectos a que chamamos “culturais”... A meu ver, não pode, mesmo que, quais anjos purificadores, lhes enfiemos “cultura” pela goela abaixo.