sexta-feira, dezembro 28, 2012

Nicole Kidman e os outros

Nomeada como actriz secundária para os Globos de Ouro, Nicole Kidman é, de facto, o centro simbólico de The Paperboy - Um Rapaz do Sul, contundente retrato das convulsões de uma cidade do Sul dos EUA — estes textos foram publicados no Diário de Notícias (26 Dezembro), com os títulos, respectivamente, 'Nicole Kidman filma contra a sua imagem de glamour' e 'Elogio dos actores e dos corpos'.

O menos que se pode dizer sobre um filme como The Paperboy, entre nós lançado com o subtítulo Um Rapaz do Sul, é que dificilmente encaixa em qualquer modelo corrente do cinema americano, quer de Hollywood, quer das áreas da produção independente. Em boa verdade, estamos perante um objecto que nos remete para a herança de algumas obras emblemáticas dos anos 50, retratando vivências específicas do Sul dos EUA, como Baby Doll (1956), de Elia Kazan, Gata em Telhado de Zinco Quente (1958), de Richard Brooks, ou Paixões que Escaldam (1958), de Martin Ritt. Ponto comum a todos esses títulos: o jogo de contrastes e contradições entre um sistema de vida gerido por regras morais muito estritas e um submundo de comportamentos que, de forma mais ou menos consciente, desafiam essas regras e respectivos valores.
Baseado no romance homónimo de Pete Dexter [foto] (distinguido com o prémio PEN Center USA de 1996), o filme teve a sua estreia absoluta no Festival de Cannes, no passado mês de Maio. Realizado por Lee Daniels, o cineasta que dirigiu o aclamado Precious (2009), sobre uma adolescente que tenta escapar a uma existência de repressão e continuados abusos sexuais, The Paperboy apresenta-se com a estrutura de um tradicional inquérito policial: um repórter (Matthew McConaughey) e o seu jovem irmão (Zac Ephron) tentam provar a inocência de um prisioneiro (John Cusack) condenado à pena de morte. Em todo o caso, os eventos vão adquirindo uma dimensão insólita através dessa singularíssima personagem que é Charlotte Bless, uma desconcertante femme fatale que se corresponde com o condenado, apostando num futuro duplamente radioso: primeiro, ajudando a provar a sua inocência; depois, acreditando que se casará com ele...
No papel de Charlotte, o filme possui um trunfo decisivo: a interpretação de Nicole Kidman. Mesmo não sendo a figura central do filme, é por ela que passa uma perturbação erótica que contamina todas as personagens e situações. Mais do que isso: sendo Charlotte uma figura que oscila entre uma sexualidade enigmática e uma postura mais ou menos grosseira, reforçada por uma desabrida linguagem, Nicole Kidman arrisca trabalhar, assim, contra a sua própria imagem de sofisticação e glamour (cristalizada em alguns dos anúncios, para perfumes ou relógios, em que tem participado).
Quando The Paperboy foi apresentado em Cannes, alguns observadores previram-lhe uma presença forte na temporada de prémios, no final do ano e começo de 2013. E é um facto que Nicole Kidman surge, para já, como uma das nomeadas para os Globos de Ouro, na categoria de melhor actriz secundária. O certo é que a fraca carreira nas salas dos EUA inverteu o seu favoritismo inicial. Ainda assim, não será arriscado supor que o filme pode vir a ter uma presença significativa na corrida para alguns Oscars, a começar pelo de melhor argumento adaptado (co-assinado por Lee Daniels e Pete Dexter). Seja como for, com ou sem prémios, The Paperboy fica como um dos objectos mais estranhos, e também mais sedutores, da produção americana de 2012.

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É verdade que algum jornalismo rotineiro só fala de filmes americanos a partir dos números de bilheteira. Como se a história do cinema (americano ou não) fosse uma banal variação sobre os valores do marketing... Não que se possa compreender essa história recalcando os mais diversos e complexos factores económicos. Acontece que a mentalidade do box office venera os relatórios financeiros, menosprezando todos os valores específicos dos filmes. Não haverá alternativa a tal visão?
Este ano, por exemplo, no top dos maiores sucessos nos EUA, desde Os Vingadores (1º lugar) até O Hobbit (para já, em 14º), é impossível encontrar um filme cujo trunfo promocional seja... um actor ou uma actriz! A estrela (star!), valor visceral da história clássica de Hollywood, tornou-se um frágil apêndice da vida financeira da maior parte dos filmes. Por exemplo, o magnífico The Paperboy, de Lee Daniels. É verdade que conta com Nicole Kidman, uma estrela realmente planetária, isto é, reconhecida e reconhecível por plateias de todo o mundo... Que lugar consegue na lista dos filmes mais rentáveis do ano? Pois bem, parece uma anedota mal contada, mas surge em nº 220.
A evidência cruel é esta: um cinema alicerçado em personagens de enorme complexidade psicológica está automaticamente condenado pelos padrões correntes do mercado. O absurdo de tudo isto é tanto maior quanto vivemos sob o jugo de uma cultura mediática (de raiz televisiva) que todos os dias nos massacra com estereótipos sexuais supostamente “chocantes”... The Paperboy, por sua vez, é um subtil retrato de um contexto perversamente erotizado, em que sexualidade e poder político se enredam de forma bizarra e perturbante. Será que o público dos “efeitos especiais” já não reconhece a vibração dos corpos vivos?