domingo, novembro 04, 2012

Taviani & Shakespeare

Uma encenação numa prisão de alta segurança: teatro e cinema, documentário e ficção, a cores e a preto e branco, um grande filme dos irmãos Taviani — este texto foi publicado no Diário de Notícias (2 Novembro), com o título 'Teatro, cinema e liberdade'.

Apetece dizer que o admirável filme de Paolo e Vittorio Taviani, César Deve Morrer, actualiza um célebre e provocatório axioma de Manoel de Oliveira: “o cinema não existe”. Porquê? Porque aquilo que existe é... o teatro. O resto são formas técnicas, mais ou menos elaboradas, de “registo” e “fixação” do teatro. Dir-se-ia que, ao filmarem uma encenação de Shakespeare (Júlio César) no interior de uma prisão de alta segurança, os Taviani nos dizem, justamente, que a única verdade daquilo que filmam está, não na “transcrição” cinematográfica, mas na intensidade, na vibração e na verdade daqueles corpos prisioneiros.
Compaixão? Sim, compaixão é uma bela palavra. Envolve uma ideia de proximidade e estranheza, quer dizer, de disponibilidade para a diferença radical do outro. Nada a ver com a piedade, essa versão televisiva da compaixão que, todos os dias, encena os dramas do mundo como se as suas personagens só pudessem ser “carrascos” ou “vítimas”. Em César Deve Morrer, a vibração do texto shakespeareano multiplica-se nas poses elaboradas dos prisioneiros. E tanto mais quanto o tema em que o filme dos Taviani desemboca, sendo o mais simples, é também o mais radical. A saber: o trabalho.
No passado mês de Fevereiro, quando César Deve Morrer arrebatou o Urso de Ouro da 62ª edição do Festival de Berlim, algumas vozes “progressistas” protestaram contra o facto de ser distinguido um filme tão... tradicional. Digamos, para simplificar, que se se trata de discutir a metódica consciência da complexidade humana que os Taviani procuram, então, mais do que nunca, importa escolher a retaguarda da tradição. Os que se julgam mais à frente talvez já tenham esquecido o valor essencial: ser livre é olhar o mundo à nossa volta.