sexta-feira, novembro 16, 2012

A arte de falar (mal) em televisão

THOMAS EAKINS
Clara
c. 1890
Em televisão, fala-se cada vez pior, a ponto de fazer sentido perguntar se, lá dentro, ainda há alguém que escute aquilo que se diz — este texto foi publicado no Diário de Notícias (9 Novembro), com o título 'Falar mal e não pensar'.

1. “Dizer que...”. “Lembrar que...” “Acrescentar que...” A epidemia começou com os comentadores de futebol e foi tomando conta de muitos repórteres e jornalistas: já não há tempos de verbos, a não ser o infinito. Claro que o erro na fala, em particular na sempre difícil tarefa que é o directo televisivo, é coisa normal e perfeitamente compreensível. Mas não é isso que está em causa. É, isso sim, o horror da norma a consagrar o desconchavo gramatical. Afinal de contas, vivemos no país em que já quase ninguém sabe dizer “à última hora”, consagrado que está o macabro “à última da hora”. Dúvida pedagógica: qual o papel (e o efectivo poder) dos responsáveis editoriais face à degradação da língua?

2. A crise gera as mais diversas formas de austeridade. Excepto na fala. Há dias, um comentador de futebol pontuava mesmo o seu interminável discurso (duas horas sem se calar é obra!) com a inusitada evocação da dramática infância de um dos jogadores... Já nem sequer se acredita na justeza de expressões como “há seis meses”. Poderia dizer-se também “seis meses atrás”. Mas não. Agora passou a ser chique mostrar que se conhecem as duas hipóteses: “há seis meses atrás”. Não, não estou a inventar: ouça-se o anúncio de um automóvel que anda a passar em todas as televisões. E já se sabe: mesmo o mais triste disparate, quando é aplicado pela toda poderosa publicidade, transforma-se em norma social.

3. Veja-se, ouça-se a metódica destruição das mais delicadas nuances da língua portuguesa nas injecções diárias desse programa sinistro que é Casa dos Segredos (TVI). O militante cinismo de alguns responsáveis televisivos insistirá sempre em proclamar que as grandes audiências são eloquentes... Claro que são (para as contas da publicidade, pelo menos). E importa reconhecer que, no fundo, é de eloquência que se trata: fenómenos de tal dimensão promovem a continuada degradação dos mais genuínos valores que nos fazem ser um país e uma comunidade. Incluindo no modo de falar. Decididamente, já era tempo de as televisões pensarem um pouco sobre a sua própria crise.