terça-feira, outubro 30, 2012

Chantal Akerman e a loucura (2/2)

MAGRITTE
La Folie Almayer
1969
Homenageada no DocLisboa, Chantal Akerman está também de volta ao mercado português, através de A Loucura de Almayer — este texto foi publicado no Diário de Notícias (28 Outubro), com o título 'Entre a Malásia e a utopia'.

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Entramos no cinema de Chantal Akerman como numa paisagem de Magritte (hélas!, um belga tal como ela): reconhecemos objectos, corpos e cenários; ao mesmo tempo, sentimos ou pressentimos que o nosso reconhecimento não basta para compreender a lógica da cena que contemplamos. Afinal de contas, este mundo em que sabemos nomear cada personagem ou adereço é também um mundo assombrado pelo sem sentido de muitas das suas relações. O mapa do género humano carece de coerência e estabilidade: no limite, isso conduz-nos ao imenso planalto do absurdo ou ao desfiladeiro da loucura.
A Loucura de Almayer é sobre isso mesmo. Ou melhor, nasce no interior de tudo isso. Ao transpor o romance de Conrad para a Malásia de 1950, Akerman não está exactamente a “actualizar” a história. Em boa verdade, a ideia que ela faz passar é a de uma radical intemporalidade dessa história: Almayer (notável e enigmático Stanislas Merhar) possui a vertigem de uma personagem que deseja subtrair-se ao inexorável do tempo.
Por uma cruel e muito literária ironia (do género que a escrita de um Roland Barthes nos ensinou a ter em conta), a língua francesa dá corpo à moral de tudo isto. A palavra “malaise”, designando o país e a identidade geográfica da filha de Almayer (nascida de uma mãe “malaia”), é também a mesma que define uma condição individual em que o “mal-estar” envolve o desencanto existencial e a angústia moral. Em boa verdade, nessa fricção da linguagem falada, deparamos com a tragédia mais funda de Almayer: ele é alguém que procura encontrar um lugar estável na esquizofrenia da sua odisseia geográfica, um viajante ferido pelo próprio desejo utópico que o colocou em movimento. Através do seu cinema secreto e contemplativo, Akerman mostra-nos como somos sempre nómadas.