segunda-feira, outubro 29, 2012

Chantal Akerman e a loucura (1/2)

Chantal Akerman no seu filme Je, Tu, Il, Elle (1974)
Homenageada no DocLisboa, Chantal Akerman está também de volta ao mercado português, através de A Loucura de Almayer — estes textos foram publicados no Diário de Notícias (28 Outubro), sob o título genérico 'Chantal Akerman reinventa romance de Joseph Conrad'.

* Nasceu em Bruxelas, em 1950.
* Prémio Lumière (2005): melhor filme francófono, Amanhã Mudamos de Casa.
* Dirigiu um episódio de O Estado do Mundo (2007), produzido pela Fundação Gulbenkian

Antes de A Loucura de Almayer, Chantal Akerman já mostrara o seu fascínio por cenários mais ou menos distantes, por exemplo filmando em espaços novaiorquinos, no documentário News from Home (1977) ou na comédia romântica Um Divã em Nova Iorque (1996). Entre os seus títulos mais conhecidos, incluem-se ainda Les Rendez-Vous d’Anna (1978), Toute une Nuit (1982) e a comédia musical Golden Eighties (1986). Em D’Est (1993), filmou os países de Leste depois da Queda do Muro de Berlim.


Subitamente, Chantal Akerman emerge como um nome essencial na actualidade cinematográfica portuguesa. Primeiro, porque o DocLisboa lhe dedicou uma retrospectiva integral que, além do mais, permite avaliar o seu singular ziguezague entre a “objectividade” do documentário e a “subjectividade” da ficção; depois, porque o seu filme mais recente, A Loucura de Almayer (2011), chegou ao circuito comercial na passada quinta-feira. E vale a pena recordar que, em meados da década de 70, Akerman encontrou no nosso país, no âmbito do Festival da Figueira da Foz, um importante espaço de divulgação dos seus primeiros filmes, nomeadamente Jeanne Dielman, 23 Quai du Commerce, 1080 Bruxelles (1975) e Je, Tu, Il, Elle (1974).
Cineasta belga, de uma geração marcada pela herança crítica e experimental da Nova Vaga, Akerman tem mantido uma importante relação criativa com o universo literário, por vezes apostando em ousadas reinvenções de obras ligadas à grande tradição do romance. Assim aconteceu com A Cativa (2000), adaptando para o presente A Prisioneira, quinto volume de À Procura do Tempo Perdido, de Marcel Proust. Com A Loucura de Almayer, propõe também uma inesperada deslocação temporal: o ponto de partida é o primeiro romance de Joseph Conrad, Almayer’s Folly, publicado em 1895 e tendo por cenário as Índias orientais; agora, o filme retoma a personagem de Almayer, transferindo-o para os anos 50, no século XX, embora mantendo o mesmo assombramento cenográfico e existencial dos cenários da Malásia.
A “loucura” de Almayer nasce do cruzamento cruel de duas componentes. Assim, ele pode ser visto como o protótipo do colonizador que, em terras exóticas, persegue a miragem de uma riqueza absoluta. Ao mesmo tempo, o seu envolvimento com as personagens locais empurra-o para um labirinto vertiginoso, porventura sem saída: Nina, a filha que nasceu do casamento com uma mulher que enlouqueceu, é a prova real da sua utopia e também do seu impasse existencial.
Para interpretar Almayer, Akerman escolheu de novo Stanislas Merhar, o actor francês que já protagonizara A Cativa. Com uma carreira discreta, mas recheada de momentos invulgares, Merhar tem sido curiosamente convocado para universos directa ou indirectamente inspirados na tradição literária. Vimo-lo, por exemplo, em A Carta (1999), de Manoel de Oliveira, ou ainda em Adolphe (2002), de Benoît Jacquot, adaptação do clássico de Benjamin Constant que, infelizmente, nunca chegou às salas comerciais do nosso país.