segunda-feira, agosto 13, 2012

Retrato japonês com crianças

Por regra, as ficções televisivas de raiz novelesca tratam as crianças e adolescentes a partir de um horrível paternalismo. Daí a alegria com que descobrimos um filme como O Meu Maior Desejo (título inglês: I Wish), do japonês Hirokazu Kore-eda: afinal, é possível filmar o mundo infantil sem rasurar a sua complexidade humana — este texto foi publicado no Diário de Notícias (9 Agosto), com o título 'Crianças, histórias e realismo'.

Na sociedade portuguesa, o triunfo público de modelos de ficção filiados em Morangos com Açúcar envolve uma violenta moral narrativa: em tais produtos, representar as personagens mais jovens é reduzi-las a estereótipos figurativos e dramáticos, de preferência conservando sempre uma margem para, ciclicamente, as tratar como patetas alegres com hormonas mais ou menos descontroladas... Que tais modelos sejam poderosíssimos, impondo formas concretas de percepção do mundo (e consumo cultural), eis uma grande questão cuja discussão permanece politicamente adiada. Seja como for, importa sublinhar o mais simples: nem todos os criadores cinematográficos ou televisivos tratam assim os mais novos. A começar por Portugal, claro.
O exemplo que aqui se refere chega do Japão e é, por certo, um dos mais belos e delicados filmes deste Verão cinematográfico: em O Meu Maior Desejo encontramos, não apenas crianças tratadas com infinito respeito dramático e humano, mas também uma subtil reflexão sobre o modo como certos elementos do mundo contemporâneo (no Japão e não só) tendem a perverter os tradicionais laços familiares, no limite provocando estranhas e perturbantes “trocas” simbólicas entre pais e filhos.
O filme de Hirokazu Kore-eda envolve a vertigem da fábula (formular um desejo perante um comboio de alta velocidade...), mas acaba por se enraizar num elaborado gosto realista. Com uma lição que importa não secundarizar: ser realista não é acreditar que as coisas se “revelam” apenas porque colocamos uma câmara à sua frente; ser realista é aceitar penetrar no labirinto dos seres e das suas relações, na certeza de que o evidente pode esconder o transcendente (ou o contrário). Como dizia o grande Christian Metz: “O real não conta histórias”.