domingo, julho 01, 2012

Os "sofredores" do futebol

VIVRE SA VIE (1962)
Para muitos repórteres de televisão, o adepto de futebol é, obrigatoriamente, um "sofredor"... E tratam-no como vítima de uma maldição sem solução — este texto foi publicado no Diário de Notícias (29 Junho), com o título 'Futebol e sofrimento'.

Num belíssimo monólogo do filme Viver a sua Vida (Jean-Luc Godard, 1962), Anna Karina explica o conceito de responsabilidade. São palavras de luminosa beleza, por certo marcadas pela angústia existencialista da época, mas cuja energia há muito transcendeu qualquer contexto social ou artístico. Diz ela: “Eu acredito que somos sempre responsáveis pelo que fazemos. E livres.” E exemplifica: “Levanto a mão, sou responsável. Viro a cabeça para o lado direito, sou responsável. Sinto-me infeliz, sou responsável. Fumo um cigarro, sou responsável. Fecho os olhos, sou responsável. Esqueço-me que sou responsável, mas sou.”
Qual é o sentido de responsabilidade dos repórteres de televisão? Falando do presente: como é que os repórteres do futebol e do Euro2012 encaram a sua tarefa de escutar, nas ruas, os adeptos?
Enfim, não se espera que os repórteres revelem o génio poético e a acutilância filosófica da escrita “godardiana”... Em todo o caso, vale a pena perguntar por que razão insistem em repetir algumas perguntas preguiçosamente formatadas. Exemplo? “Sofreu muito?”
O cliché envolve uma chocante obscenidade. Assim, esses mesmos repórteres podem fazer (e fazem) reportagens apocalípticas sobre a crise económica e o inferno na terra e nunca falam em “sofrimento”... Entrevistam pessoas em situações dramáticas de pobreza e desemprego e nunca falam em “sofrimento”... São mesmo capazes de construir metódicas reportagens sobre acidentes de viação, seus mortos e feridos, e nunca falam em “sofrimento”... Mas assim que encontram um adepto do futebol aos pulos, gritando e lançando o cachecol ao ar, não se lembram de outra coisa que não seja: “Sofreu muito?”
Que responsabilidade envolve este sistema estético e cultural (é verdade: a cultura é feita sobretudo pelos que dizem estar fora dela) que confunde o futebol com a apoteose do nosso sofrimento? Como é que o repórter se sente quando vê o resultado do seu trabalho? Será que se questiona sobre a vida daqueles que retrata de forma tão simplista? Ou interroga-se ao espelho: “O que é que eu sei do meu sofrimento?”