domingo, junho 17, 2012

Paramount, o primeiro século (1/2)

Os 100 anos da Paramount remetem-nos para uma história, material e mitológica, em que o glamour de Hollywood se cruza com o advento da televisão e a nova idade da comunicação audiovisual. Aqui se evocam alguns títulos emblemáticos na evolução do estúdio — este texto foi publicado no Diário de Notícias (16 Junho), com o título 'Gangsters, "aliens" e histórias da Bíblia'.

Ao escrever e realizar O Padrinho (1972), tendo como base o romance de Mario Puzo, Francis Ford Coppola entrou na história dos estúdios Paramount como uma espécie de “salvador”. De facto, para a Paramount e, de um modo geral, para Hollywood, os tempos eram, no mínimo, incertos. Vivia-se uma época de confluência de muitos factores contraditórios e, em boa verdade, ninguém sabia muito bem como gerir a indústria cinematográfica.
Os valores clássicos da “fábrica de sonhos” estavam a perder o seu fulgor. Desde o momento simbólico da morte de Marilyn Monroe (em 1962), não parecia possível reconstruir os modelos tradicionais de glamour. Muito menos as suas graciosas ilusões. Além do mais, a energia criativa da década de 60, com as muitas “novas vagas” que abalaram todas as certezas artísticas e políticas (de Paris a Nova Iorque), deixara um fascinante espólio artístico, mas também muitas dúvidas sobre as formas de organização interna da indústria. Na prática, a concorrência de um novo e aguerrido parceiro – a televisão –, obrigava a questionar muitas opções financeiras de fundo, tanto mais que se tinham desagregado as formas tradicionais de organização da produção em torno de géneros mais ou menos populares (drama, comédia, musical, western, etc.).
Num livro que, em pouco tempo, se tornou uma referência clássica sobre essa época (Easy Riders, Raging Bulls, Simon & Schuster, 1998), Peter Biskind descreve Hollywood no começo dos anos 70 como um lugar afectado por um dramático abalo estrutural, num certo sentido mais violento que o lendário tremor de terra sentido em Los Angeles a 9 de Fevereiro de 1971. Escreve ele na introdução da sua investigação: “O verdadeiro tremor de terra, a convulsão cultural que virou do avesso a indústria cinematográfica, tinha começado uma década mais cedo, quando as placas tectónicas das traseiras dos pavilhões dos estúdios começaram a mover-se, abalando as verdades da Guerra Fria – o medo generalizado da União Soviética, a paranóia do Pânico Vermelho, a ameaça da bomba –, libertando uma nova geração de cineastas congelados no gelo do conformismo dos anos 50. Sentiu-se, então, de forma desordenada, uma série de choques premonitórios – o movimento dos direitos civis, os Beatles, a pílula, o Vietname e as drogas – que se combinaram para agitar os estúdios de forma brutal, lançando contra eles essa onda demográfica que era o baby boom.”
Não admira, por isso, que a Paramount tivesse avançado para a produção de O Padrinho com muita relutância. Aliás, Coppola nem sequer foi a primeira escolha para a realização: o italiano Sergio Leone tinha sido convidado, mas recusara, uma vez que já nessa altura ambicionava concretizar o projecto, tematicamente próximo, de Era uma Vez na América (que, afinal, só surgiria em 1984).
É certo que, para além de pertencer a um grupo invulgar de novos autores afirmados ao longo da década anterior (Robert Altman, Martin Scorsese, Brian DePalma, etc.), Coppola tinha também o prestígio decorrente do Óscar de melhor argumento que ganhara com Patton (1970), de Franklin J. Schaffner. Seja como for, quase tudo foi motivo de tensão entre o estúdio e o cineasta, incluindo o muito polémico casting. De facto, em vez de Marlon Brando, Laurence Olivier (?) chegou a ser considerado para o papel de Don Corleone, além de que a carreira ainda muito discreta de Al Pacino (era, sobretudo, um actor de teatro) fazia dele um candidato “fraco” para interpretar Michael Corleone...
Que O Padrinho tenha sido concretizado, pertencendo já há muito tempo à galeria mitológica de Hollywood, é algo que releva do quase milagre, até porque, para além das muitas atribulações práticas e conceptuais (Coppola teve mesmo que lutar para conseguir que a acção não fosse “actualizada” e decorresse no período que o próprio livro evoca, 1945/55), ninguém podia garantir que um “filme-de-gangsters” fosse, no começo dos anos 70, uma opção segura de produção.
A produção da Paramount, em particular, reflectia os mais desconcertantes ziguezagues, integrando alguns filmes “terminais” de grandes autores clássicos como Otto Preminger (Diz-me que Amas, Junie Moon, 1970), Vincente Minnelli (Melinda, 1970) ou Howard Hawks (Rio Lobo, 1970), a par de produções mais ou menos nostálgicas, como o musical Darling Lili (1971), de Blake Edwards, que já não conseguiam mobilizar os espectadores.
A todos os níveis, a performance de O Padrinho foi excepcional. Desde logo nas bilheteiras dos EUA, onde conseguiu valores que, quando ajustados tendo em conta a inflação (ver: boxofficemojo.com), o colocam ainda como o 23º filme mais rentável de todos os tempos, à frente de títulos como O Cavaleiro das Trevas (28º) ou O Homem-Aranha (36º). Mas também no reconhecimento pelos seus pares, já que arrebatou três Oscars nas categorias de melhor filme, melhor actor (Brando) e melhor argumento (Coppola/Puzo).
Em todo o caso, seria redutor ver em tais proezas apenas a afirmação de uma renovação de protagonistas de que Coppola seria um dos símbolos mais imediatos. Ao mesmo tempo, há no triunfo de O Padrinho um paradoxo fascinante, porque ligado a factores eminentemente conservadores: era a própria Paramount que, assim, reencontrava o seu fulgor de entidade maior (“major”, como diz a terminologia clássica) de Hollywood, relançando também a sua matriz de estúdio.
É por isso também que não devemos ver no prolongamento de O Padrinho (com duas sequelas, em 1974 e 1990) a mera satisfação de um sentido de “série”. Para além das dúvidas e atribulações que envolveram a produção da terceira parte, a saga de O Padrinho afirma o estúdio como núcleo de um património narrativo que é, de uma só vez, espectacular e simbólico.

[continua]