terça-feira, junho 05, 2012

Entrevista com David Cronenberg (2/3)

Rodagem de COSMOPOLIS: Cronenberg + Robert Pattinson

Esta entrevista foi publicada no Diário de Notícias (2 Junho), com o título ' "Cosmopolis" pode ser um sonho mas também um documentário ' — a conversa com David Cronenberg ocorreu em Cannes, durante o festival, a 24 de Maio, no Hotel JW Marriott.

[ 1 ]

Cosmopolis é um filme em que as pessoas falam imenso, é mesmo um dos filmes mais “palradores” da sua filmografia...
Um Método Perigoso também era. Os meus dois últimos filmes são, como eu costumo dizer, diálogo de uma ponta à outra (mesmo se o uso da linguagem é muito diferente, como é diferente o estilo e a época). Em ambos os filmes, as pessoas falam de coisas muito abstractas e com um grande intensidade: em Um Método Perigoso, as ideias abstractas vão-se ligando com a sexualidade, a paixão e os corpos; mas em Cosmopolis há uma estranha falta de ligação entre aquilo que dizem e a maneira como vivem.

Será que podemos imaginar o que Sigmund Freud [foto] diria da idade da Internet?
Creio bem que se mostraria muito interessado. E teria muito a dizer sobre o assunto...

Em Um Método Perigoso, precisamente com Freud (Viggo Mortensen) como uma das personagens, assistimos a uma certa afirmação de poder da linguagem. Um pouco ao contrário, em Cosmopolis, as personagens falam, falam, falam... mas não podemos deixar de perguntar: será que sabem do que estão a falar?
De facto, não creio que saibam. Em Um Método Perigoso, assistimos a uma tentativa para capturar a realidade com palavras e conceitos, usando alguns desses conceitos (como a psicanálise ou o inconsciente) para nos habilitar com novas formas de compreensão da condição humana. Em Cosmopolis, é quase o inverso, como se a linguagem fosse uma fuga à realidade... Aliás, como os mercados financeiros. As pessoas fazem dinheiro a partir de quê? A partir do nada. Não fabricam nada, não criam nada, são apenas números a passar... É uma vida muito bizarra.

Nessa perspectiva, aceita que se defina o seu trabalho como um cinema “freudiano”?
Não creio que seja. Penso que Freud deu um imenso contributo para compreendermos o funcionamento do espírito humano. E é verdade que Um Método Perigoso tem uma estrutura “freudiana”, com as figuras dramáticas do pai e do filho, a personagem de Keira Knightley a simbolizar o “id”, o mundo das pulsões... Mas no meu cinema, em geral, não creio que as coisas se passem assim. Aceito que se possa construir uma teoria em torno disso mas, para mim, que estou por dentro, não é assim que sinto as coisas.

O que o leva, então, a decidir concretizar um determinado projecto de filme? É apenas a história?
Pode ser a história mas, em boa verdade, pode ser qualquer coisa... Com Cosmopolis, foi o diálogo. Já conhecia outros romances de DeLillo e sempre me impressionou a maneira como ele escreve: é verdadeiro em relação aos modos de falar dos americanos, mas tem também qualquer coisa de estilizado. E apetecia-me ouvir essas falas ditas por actores. Faz lembrar um pouco o teatro de Harold Pinter, no sentido em que identificamos de imediato os ritmos da sua escrita.

Nesse sentido, podemos dizer que o Cosmopolis, o filme, tem qualquer coisa de peça teatral?
Não, penso que não. Sobretudo porque não entendo o teatro como um mero acontecimento de palavras. De facto, na prática, é tudo muito diferente: quando fazemos um filme, utilizamos várias lentes, temos luz, movimento... Para mim, a essência do cinema é um rosto, em grande plano, a falar. É verdade que nos últimos 22 minutos de Cosmopolis temos apenas dois actores, Robert Pattinson e Paul Giamatti, e um cenário. E é também verdade que era possível fazer isso como uma pequena peça de teatro, mas nunca seria o mesmo.

Apetece lançar-lhe uma provocação e perguntar se essa essência do cinema – um rosto, em grande plano, a falar – não se confunde com as “cabeças falantes” (talking heads) da televisão?
É diferente. Porque depende daquilo que a “cabeça” está a dizer, do modo como está iluminada, que lente se está a usar e como é que, pela montagem, se liga com outras coisas... Hoje em dia, em televisão, acontece muitas vezes que usam a câmara à mão e abanam-na muito porque, em última instância, não têm confiança naquilo que estão a filmar. Mas se temos um rosto magnífico, a dizer magníficas palavras, isso para mim é cinema. Além do mais, quando se faz teatro, não há grandes planos.

Na televisão há uma crescente desvalorização do enquadramento, daquilo que os franceses definem pela palavra “cadre”.
É verdade, mas também é verdade que, em televisão, há mais coisas para além das “cabeças falantes” (que são, sobretudo, um fenómeno da informação). Em televisão também temos, por exemplo, os desportos com grandes movimentos de câmara, gruas, etc.: é um grande espectáculo e não deixa de ser televisão.

E quando vê um dos seus filmes em televisão, sente ou não que algo se perde?
Não. Aliás, passei a ver mais filmes em televisão do que nas salas. Devo dizer que, para mim, o cinema “normal” está muito desvalorizado por causa da quantidade de horríveis anúncios que passam nas salas (especialmente na América do Norte). Depois, há os telemóveis, as pipocas, é tudo muito barulhento. E ainda por cima, muitas vezes, a qualidade de projecção não é famosa. Por isso, dou comigo a pensar que é bem melhor estar em casa a ver filmes no meu plasma onde as coisas, num certo sentido, permanecem mais puras.

Há toda uma dimensão social do cinema que, em grande parte, perdemos.
E pelo menos uma parte disso tem a ver com a tecnologia de computadores e telemóveis. As pessoas estão sempre a consultar os telemóveis, a mandar “tweets”... O que não deixa de ser social, mas é um social sem ligação, sem verdadeira relação. Num certo sentido, Cosmopolis é sobre isso.

[continua]