domingo, maio 06, 2012

Entrevistas de arquivo:
Sigur Rós, 2004 (parte 1)

Roma, 2004. No auditório Cavea, espaço ao ar livre longe do centro da cidade, assistia a um ensaio de som dos Sigur Rós. O concerto seria mais tarde, com as Amina na primeira parte. Antes do ensaio de som falei com Jonsi, o vocalista. Esta entrevista foi originalmente publicada no suplemento DN:música.

Sob o calor tórrido de uma tarde de Verão, os Sigur Rós ensaiavam o som e o palco para um concerto ao ar livre na capital romana. Glósoli, o single usado como cartão de visita para o novo disco, foi precisamente uma das canções escolhidas para testar o som. E que bem soou aquela aventura de um rapaz em busca do Sol perdido sob uma luz que, há três anos, não imaginaríamos de volta à música dos Sigur Rós. No belo auditório Cavea, para perto de três mil lugares, iam estrear em solo italiano alguns temas do álbum Takk [que seria editado daí a alguns dias], num concerto que, esteticamente coerente, juntou às novas canções uma série de memórias de Agaetis Byrjun, um tema só do mais remoto Von e ainda dois inéditos à espera de chegar a disco no futuro. Antes do ensaio, contudo, breve pausa para encontros com a imprensa local e uma pequena embaixada portuguesa. Jonsi, o tímido e afável vocalista, um reconhecido apaixonado por Lisboa.

Sentados em dois sofás, mesa ao lado com indispensáveis garrafas de água, a conversa com o vocalista dos Sigur Rós decorreu em amena e amigável informalidade. Partimos do novo disco e da sua evidente posição nos antípodas do anterior ( ), o “brackets álbum” (disco dos parênteses) como Jonsi lhe chama. Mas acabámos depois a falar da fidelidade dos quatro islandeses à sua língua mãe e da maneira como o público não islandês do grupo reage à sua música sem entender as palavras, aderindo apenas de uma forma emocional. Discutimos ainda a cena musical de Reykjavik, a forma como o sucesso que têm somado mundo fora não os modificou como pessoas e confirmámos a existência de um certo isolamento voluntário em que o grupo (e consequentemente a sua música) vive entre pares.

Quando é que se aperceberam que Takk, ao contrário do álbum anterior, seria mais luminoso e relativamente próximo da estrutura da canção? 

Creio que foi logo quando acabámos o álbum dos parênteses. Já o estávamos a tocar há algum tempo e não queríamos voltar àqueles terrenos. O disco é um pouco pesado, e com o tempo ficámos mesmo cansados de o tocar. Queríamos antes escrever canções diferentes e com luz interior. Depois passou-se outra etapa cansativa para nós que foi a mudança de editora e tudo o que isso naturalmente implicou. Também isso fez com que desejássemos escrever canções mais optimistas. E esse foi de facto o clima que se instalou entre toda a banda, que claramente desejava fazer um álbum mais bem disposto.

Há margens, por vós definidas, entre as quais podem reinventar o vosso som? Por exemplo, nunca fariam um álbum punk… Até onde podem mudar?

Talvez o nosso interesse pela música e pela criação de sons se inscreva entre certas frequências, entre certos campos. E é entre esses campos que queremos experimentar. Creio que o nosso som é bastante claro. O baixo tem a sua definição bem redonda, as guitarras são sujas… Creio que este é um som definido, sim.

Têm um padrão de exigência para o que levam da sala de ensaio para os discos?

Sim, claro. Temos a ambição de fazer sempre a melhor música que pudermos. E para isso juntamos as ideias de todos nós. Tudo o que apresentamos tem de ser bom.

Como lidam com o crescimento de popularidade que a vossa música tem vivido?

Bem… Isso é bom. E não temos assim tanto a consciência disso. Estamos mais tempo nos nossos apartamentos, com os amigos, a ler livros. Temos tido sorte, e não deixámos de ser quem somos. Temos, talvez, um tratamento diferente quando estamos em digressão. Mas o nosso ego não tem de mudar com isso. Gosto até de estar na estrada e conhecer novas pessoas.

Dado que a maioria do vosso público não entende o islandês, acredita que há, acima de tudo, uma identificação emocional de quem vos ouve com a vossa música? Ou seja, a música tem aqui mais sentido que as palavras?

São coisas distintas. Quando as pessoas escutam uma canção e entendem a letra criam a visão bem definida daquilo de que a canção fala. Se, pelo contrário, não descodificam as letras, criam as suas próprias imagens e pensamentos. As canções são aí gatilhos, que desencadeiam mecanismos de relacionamento com as suas vidas.

Vê esse tipo de resposta como algo semelhante à fruição da arte abstracta?

Creio que sim. Criam-se imagens e respostas mais pessoais, e talvez por isso mais fortes. Não sei se esta visão é correcta, mas parece-me que este tipo de relação com a música é mais agradável. As pessoas podem pegar no som da palavra e pensar a sua visão.


Viajando pelo mundo, conhecendo fãs e contactando com diferentes reacções ao que canta, o que sente ao verificar que essas visões podem ser completamente diferentes da original?

Isso é lindo! É como que se tivéssemos acesso a quadros diferentes e pensamentos distintos a partir do que fazemos. É muito bom. A música devia ser assim.

Sobre o que falam estas novas canções?

Sobre muitas coisas. Umas têm letras, outras não. As letras são muito simples, talvez ingénuas. Parecem contos infantis, pequenas aventuras, momentos… O Glosóli, por exemplo, é sobre um rapaz que acorda e tudo está escuro à sua volta. Não vê nada, olha para janela e está tudo escuro. Veste-se e sai pela janela e vê que não há Sol no céu. Repara que o Sol desapareceu e embarca numa viagem em busca do Sol. É uma pequena aventura.

Uma canção tem mesmo de ter uma mensagem concreta nas suas palavras?

Nem sempre. Mas a ideia de se não saber do que se fala ficava bem no álbum anterior. E foi difícil, sobretudo para muitos jornalistas, aceitar que as coisas assim fossem. Especialmente em Inglaterra e nos Estados Unidos. Devem estar muito habituados a ser alimentados com a papa feita. Disco e letras e tudo mais… Deve ter sido confuso para muitos não ter letras nem títulos sobre os quais escrever. Pareciam canções sobre nada e ficaram confusos. De resto, escreveu-se mais sobre a falta de títulos que da música! Mas houve quem gostasse da experiência e usasse a imaginação e a liberdade que lhes era dada.

Quem escreve as letras?

Tentamos fazê-las juntos. Mas é um processo difícil para nós. A música aparece sempre primeiro, e com facilidade. Depois sentamo-nos, de canetas na mão. Ouvimos a música e escrevemos ideias. Depois vemos se temos ideias semelhantes, e começamos a escrever a partir desse momento.

E porque não fazem apenas instrumentais?

Queríamos tentar escrever letras outra vez. Porque são letras mais interessantes e a minha voz também está mais interessante. O disco dos parênteses foi bom, mas aquelas ideias serviram-no apenas a ele.

Como é que hoje uma banda como os Sigur Rós trabalha integrada no catálogo de uma grande multinacional?

Ainda não estamos com a EMI há muito tempo para termos uma ideia bem definida, mas a verdade é que, para já, nos foi dado muito espaço. Só foram duas vezes à Islândia escutar as canções novas, o que nos pareceu correcto. Isto num período de ano e meio!

A editora alguma vez tentou pedir-vos que escrevessem em inglês?

Nunca! Somos respeitados pela editora. Nunca cantamos em inglês!

E nas suas bandas anteriores aos Sigur Rós?

Aí sim, cantei em inglês. Era muito novo e cantar em inglês parecia mesmo cool!

Como venceu essa ideia?

Não sei… Parecia natural cantar em inglês, mas quando se é muito novo não se sabe dizer nada em inglês a não ser aqueles lugares comuns como “having fun in the sun” ou outras coisas estúpidas parecidas. Coisas muito simples, porque não se sabe fazer melhor. A nossa língua mãe é diferente! Essa sim, conhecemos!

Há uma tradição literária na Islândia. A língua pode ser um estímulo?

A Islândia é um país de livros. A literatura tem uma história local mais importante e marcante que a música. Nem há história musical. É mesmo uma coisa recente. A literatura tem visibilidade histórica.

Que remonta ao domínio dinamarquês?

Sempre houve uma identidade cultural. E depois fartámo-nos dos dinamarqueses…

Apesar dessa história literária, a música serve hoje de cartão de visita à Islândia…

Se for música de qualidade, sim.

Vê o vosso reconhecimento como um incitamento a bandas de outros países que não cantem em inglês?

Espero que sim…

Acha que a vossa música desperta sugestões emocionais pessoais semelhantes às da leitura de poesia?

Talvez, nunca tinha pensado nisso.

Quando fazem vídeos são ainda mais poderosos e emotivos. As imagens compensam aí a falta de compreensão das palavras?

Talvez, mas talvez não… Os vídeos são apenas uma das interpretações possíveis da canção. O vídeo é um meio muito poderoso mas frequentemente mal usado. Não queremos nunca fazer aquele vídeo típico com a banda a tocar. Quando íamos fazer o nosso primeiro grupo vi um grupo de teatro na televisão. Era tão belo, sincero e honesto… Pensámos logo em ter algo como aquilo no nosso vídeo. O vídeo seguinte, o futebolístico, já veio de uma ideia bem antiga. Era uma ideia de jogar com elementos completamente opostos, o futebol, o beijo dos rapazes. Era uma história de amor honesta em conflito com a sociedade. Conhecemos a equipa que ia trabalhar connosco num restaurante. Não nos conhecíamos a eles nem eles a nós. Eles tinham uma ideia semelhante, mas com homens adultos. Era mais estranho… Mas ao mesmo tempo engraçado como aquelas ideias se relacionavam.
(continua)