segunda-feira, março 05, 2012

"Vergonha": histórias da nossa solidão

MICHAEL FASSBENDER e STEVE McQUEEN
> London Film Festival (14-10-2011)
De que falamos quando falamos de um filme como Vergonha, de Steve McQueen? Que histórias se convocam na história vivida pela personagem interpretada por Michael Fassbender? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (4 Março), com o título 'O último tango em Nova Iorque'.

Os tempos não mudaram. Sou da geração que, há 40 anos, recebeu O Último Tango em Paris, de Bernardo Bertolucci, enredado numa teia de vulgaridades moralistas, apontando quase sempre para uma avaliação métrica das personagens e respectivas desventuras: afinal, quantos centímetros de pele nua se via nas cenas sexuais?... E que proezas, mais ou menos ginasticadas, se consumavam em tais cenas?...
Agora, com Vergonha, de Steve McQueen, há todo um envolvimento (jornalístico, hélas!) que favorece uma mesma visão “descritiva”, tendencialmente caricatural. Em boa verdade, é a formatação televisiva dos olhares que dita as suas leis. Não poderia ser de outro modo: o sistema narrativo das telenovelas massacra-nos todos os dias com imensos estereótipos (sexuais, morais, iconográficos) e não parece estar à beira de abdicar do seu poder normativo, simbólico e económico.
Por isso mesmo, talvez seja importante sublinhar que Vergonha não é um filme “sobre” sexo, mas sim um elaborado exercício narrativo em que, por uma vez, a sexualidade faz parte de uma complexa teia dramática e emocional. Assim, o filme não se “interrompe” para dar lugar a “cenas-de-sexo” tratadas como banais acrobacias circenses. Aqui, a performance sexual surge como parte integrante da teia narrativa, funcionando como revelador da componente mais funda da personagem de Brandon (Michael Fassbender). A saber: a solidão.
Perdido na cidade que aparentemente domina, Brandon emerge como símbolo de uma facilidade muito típica dos nossos dias (das compras quotidianas à economia global, muito para além do domínio específico da sexualidade): é uma facilidade que, em qualquer momento, nos confere o poder fátuo de estabelecer alguma ligação (algum link) com uma qualquer pessoa ou entidade que passa a integrar o domínio virtual da nossa existência.
Daí que seja insuficiente dizermos que Brandon vive o sexo como uma droga. No limite, ele não se relaciona com nada, a não ser com a projecção imaginária do seus desejos. Daí também a importância vital da personagem da irmã, Sissy (Carey Mulligan): vinda dos confins mais esquecidos do feminino, ela instala a nostalgia magoada de um tempo em que ainda era possível conceber alguma segurança materna. Vergonha é, afinal, um filme sobre a orfandade afectiva. Dos mais radicais e também dos mais belos.