quarta-feira, março 07, 2012

Mullova & Beethoven

Fim de tarde de terça-feira, Grande Auditório: foi o regresso de uma habituée das temporadas de música da Fundação Gulbenkian — a violinista Viktoria Mullova —, mas a sua presença teve qualquer coisa de revelação, suave e empolgante: com Kristian Bezuidenhout no pianoforte, Mullova veio interpretar três sonatas de Ludwig van Beethoven (nºs 3, 4 e 9, esta a célebre "Kreutzer"), fazendo eco de um dos seus mais recentes registos em disco. Efeito Beethoven? Sem dúvida. As sonatas para violino e piano, além de celebrarem a igualdade "democrática" dos dois instrumentos (mesmo não esquecendo que é o violino quem "ascende" face à matriz ainda herdada de Mozart [ver programa de sala]), correspondem também a um especialíssimo território de diálogo instrumental. Dir-se-ia que violino e piano se escutam, contrapõem e dialogam num jogo de solidões partilhadas com tanto de angústia, sempre à beira da decomposição das suas regras, como de pressentimento utópico.
Na sua pose austera, estranhamente neutra, Mullova parece ter chegado a um ponto da sua arte em que tudo nela exprime uma confiança tanto mais depurada quanto mais atenta às nuances de cada obra interpretada. A cumplicidade de Bezuidenhout, alicerçada num tratamento exemplarmente contido do pianoforte, não será estranha a tal estado de coisas. Ouvimos Beethoven através de um sentimento paradoxal de atenção e desprendimento — como se as singularidades da sua escrita fossem, agora, objecto de uma radiosa celebração de contrários: a música entendida, e "reproduzida", como expressão de uma alma atribulada e sua pedagógica contemplação. Foi um concerto luminoso, de genuína comunhão.