domingo, janeiro 29, 2012

Sócrates & Cavaco: a luta continua!

PIET MONDRIAN
Composição com vermelho, amarelo e azul

1921
Infelizmente, o espaço televisivo continua privilegiar o fait divers em detrimento das exigências e dos valores do conhecimento. Quem perde? A inteligência de todos nós — este texto foi publicado no Diário de Notícias (27 Janeiro), com o título 'Eu agora sou "cavaquista"'.

O facto de considerar que a degradação da imagem pública de José Sócrates resultou, em parte, da demagogia argumentativa de algum jornalismo televisivo, valeu-me a acusação de perigoso “socratista”. Se esse é o preço a pagar por não aceitar a lógica de muitas mediocridades, porque não? Em todo o caso, pressinto que entrei numa crise mais dramática: estou a transformar-me num empedernido “cavaquista”.
Tudo começou com a proliferação de notícias televisivas sobre o facto de o Presidente da República ter sido “vaiado”, em Guimarães, na noite de abertura da Capital Europeia da Cultura (à qual estou ligado como programador). Quanto mais assistia à repetição ad nauseaum das respectivas imagens e sons, mais confirmava uma triste certeza: com frequência, o jornalismo passou a ser substituído pela fabricação grosseira de fogo de artifício para usar e deitar fora (nada a ver, entenda-se, com o talento de La Fura del Baus).
Acontece que, desta vez, eu estava na Praça do Toural, em Guimarães, a cerca de 20 metros das célebres “vaias” e vi (e ouvi) aquilo que faz parte do folclore: entre as cem ou duzentas pessoas que realmente podiam ver o Presidente a entrar para o seu carro, uma metade delas aplaudiu-o, enquanto algumas dezenas terão feito aquilo que alguns cidadãos gostam de fazer (assobiar), seja porque algum político vai a passar, seja porque Ronaldo falhou mais um golo (força, Cristiano, não desistas!). Aliás, ouviu-se o mesmo tipo de aplausos e assobios para Durão Barroso, mas o facto, estranhamente, não chegou às notícias. Em boa verdade, para os milhares de pessoas que estavam no Toural, um e outro evento não terão passado de uma agitação efémera, lá ao longe.
Como é possível que um fait divers como este adquira o peso e a gravidade de um facto político? Como chegámos a esta triste conjuntura em que alguma informação televisiva parece só viver em função da celebração grotesca do ruído ou da confusão? Ainda e sempre, o meu espanto redobra perante a cobardia intelectual da maioria da classe política, tanto à esquerda como à direita: porque é que os nossos políticos não enfrentam este estado de coisas como o mais prioritário dos nossos problemas culturais?