quinta-feira, novembro 24, 2011

Em conversa: Heróis do Mar


Em tempo de assinalar os 30 anos da histórica actuação dos Heróis do Mar no Rock Rendez Vous a 25 de Novembro de 1981, uma caixa é agora lançada juntando a sua obra em disco e vídeo. Aqui fica uma entrevista com Rui Pregal da Cunha, que serviu de base ao artigo ‘Cinco soldados que marcaram a nossa pop’ publicado na edição de 22 de Novembro do DN.



Os concertos de 1981 no Rock Rendez Vous (RRV) fazem parte de uma quase mitologia pop à la portuguesa. Como recorda essas noites?
Engraçado como a nossa estreia passou a ser vista como uma daquelas coisas tipo "eu estava lá" mas há quem confunda esses dois primeiros com o 3º e 4º, também decorridos no RRV, com os irmãos Pêra vestidos de beduínos a ajudar nas mudanças de instrumentos. O quinto concerto é em Leiria com o Serge Thomas do Actuel a convidar-nos para umas noites no Rex em Paris. Acho que o burbulhar e o latejar dessa primeira subida a palco só se acalma já na Gália. Uma espécie de rush maluco que nenhuma outra coisa pode alguma vez produzir.

Esperavam que a imagem do grupo gerasse tamanha controvérsia?
Não, na verdade até acho esse brouhaha um pouco tricoso. Aqui aparecem cinco rapazes a fazer aquelas canções e a imprensa comenta a indumentária, whoa, quão gay é essa situação? Os Dexy [Midnight Runners] e os ACR [A Certain Ratio] já o tinham feito. O Giorgio Armani e metade dos outros designers italianos tinham o paramilitar como tendência masculina nessa estação. Retratava o nosso som, o qual intitulámos de disco-militar, nunca nos passou que isso e as patilhas (que eu não tinha) poderiam ser vistas como algo passível de critica.

'Música Moderna' (1979)
O que tinham de novo e diferente os Heróis do Mar face aos Faíscas e Corpo Diplomático [bandas das quais os Heróis do Mar são directos herdeiros]?
Os Faíscas eram uma banda punk, vieram numa altura em que ainda nada estava a postos. Mas já com o boom do Rock português em plena erupção, o Música Moderna dos Corpo Diplomático é um disco fantástico e que serve, de certa forma, como test drive de certas coisas implementadas pelos Heróis logo a seguir indo aqui o destaque para essa preocupação pop num contexto de música eléctrica cantada em português.

Som e imagem destacavam os Heróis das demais bandas daquele tempo. Sentiam-se uma carta fora do baralho ou integraram-se bem no emergente panorama pop/rock do Portugal de então?
Integrávamos uma corrente do rock nacional porque assim o era suposto, era esse o rótulo. Mas a vontade de showmanship era elevada e muito trabalhámos para subir a fasquia, para elevar as vozes onde o silêncio parecia por vezes mais bem vindo.

Porque foram precisos mais de seis anos após a revolução para que a cultura pop cativasse uma nova geração de portugueses?
A revolução veio seguida de um tempo em que quem assim o quis pôde viver o que lhe tinha sido proibido, os 60s e os 70s. Assim a década seguinte começou com uma sensação de novo despertar, raiando a aurora de uma era verdadeiramente revolucionária.


Como se podia demarcar uma identidade própria (ou seja, portuguesa) numa música cujas matrizes eram claramente de importação (e então mais inglesas que americanas).
A forma de cantar a nossa língua e o léxico escolhido para o fazer dentro da música eléctrica, os instrumentos recuperados, dos bombos aos paulitos, e a demanda constante pela surpresa que repetidamente disparava em direcções diferentes, do cançonetismo à electrónica ou às raízes africanas.

O que vos estimulava criativamente? Que referências vos entusiasmavam e que ideias queriam projectar?
Grandeza, aquela desmedida epopeia vivida sempre por quem tem de produzir e inventar. Do Kaguemusha às pranchas do Steve Ditko, do Bandarra ao Buckaroo Banzai, do Travadinha ao Lopes Graça. Quisemos sempre representar um país almejando modernidade mas pleno de tradição.

'Amor' (1982)
Os singles dos Heróis do Mar geraram fenómenos. Os álbuns passavam mais longe dos lugares cimeiros das tabelas de vendas. Isso frustrava-vos?
Acho que pós-Amor sempre houve uma clivagem assumida entre esses dois modos: por um lado o álbum, sempre mais experimental, trabalhos de estúdio, cerebralmente mais compostos. Por outro os 12", formato privilegiado por estes 5 rapazes, como suporte preferenciado no panteão da música de dança numa decisão consciente nesse diferencial entre os LPs e estes amuse bouche de pop veraneante. Numa perspectiva lafontaineana este era o nosso lado de cigarra enquanto que os longa duração mostravam a faceta formiga, mais complexa e obreira.

O sucesso do Amor (single de 1982) definiu um modelo que vos tenha eventualmente conduzido rumo a um caminho do qual surgiram depois o Paixão e o Alegria?
Eram outros tempos mas o que poderemos sempre agradecer é o facto de nunca nos terem pedido assumidamente para desencantarmos álbuns repletos de Amores e Paixões. O sucesso do Amor põe o grupo definitivamente na ribalta, mete as miúdas aos pulos (e por sinal o resto dos familiares), cala algumas bocas da reacção, leva-nos aos prémios e à consagração mas deixa uma lâmina a pairar sobre o pescoço.

A ideia de fazer uma pop para dançar era discutida internamente ou a versão nocturna do Amor, por exemplo, foi um feliz acaso?
A Versão Nocturna feita para o lado b do 12" do Amor é feita a la Tom Moulton, com os cinco à frente da mesa de 24 canais, cada um encarregue de umas quantas pistas, ligando e desligando em sincronia, tudo a passar para uma fita de 1/2 polegada que se tornava ao fim o master para ser editado com tesoura e fita cola, invertendo a sequência dos loops recriados. Deu-nos um gozo tremendo.

'Macau' (1986)
Porque vos marcou tanto a ida a Macau a ponto de darem esse nome a um disco?
Quando a nossas aventuras nos levaram a esse derradeiro bastião do Império o grupo estava já num impasse criativo, essa viagem veio trazer novo alento e novas inspirações. Macau recebeu o filho pródigo, que lá não ia desde os quatro anos de idade, e os meus companheiros sónicos de braços abertos e uma estadia de dez dias transformou-se num mês repleto de sensações novas.

Fizeram do fado uma ideia pop. Como chegaram a essa canção [Fado foi um single editado em 1986]?
As nossas canções são muito visuais, "dois homens parados e uma linda luz" é nitidamente uma epifania algures numa pequena cidade do interior, quase que arriscaria a dizer algures no Alentejo. O fado é pop, isso já nós sabemos hoje, na altura arriscámos simplesmente em fazer o que para nós se assemelhava como tremendamente óbvio, incorporando o que era nosso e assim trazendo mais nuances ao nosso som.

Africana [o último single dos Heróis do Mar] não deixa de ser outra forma de expressão de uma identidade pop portuguesa (sendo que carregamos séculos de uma experiência africana a que, muitas vezes, não damos visibilidade em consonância com a sua relevância social e mesmo antrolpológica)...
No primeiro disco o respeito pela influência africana sentida na capital era tão óbvia que até a revista Actuel percebeu isso. A Africana é um fechar do círculo, uma homenagem à "Dona Chica" e uma parceria com o seu autor, o cantor angolano Waldemar Bastos.

Era inevitável o fim para os Heróis do Mar depois do quarto álbum?
Os Heróis do Mar poderiam ter acabado muitas vezes antes disso. Tiveram o trajecto que tinham mesmo de ter e no findar da década que os havia revelado fecharam a loja.

De que forma os vossos primeiros projectos a solo pós-ruptura deram continuidade (ou contrariaram) os caminhos lançados pela aventura dos Heróis do Mar? Falo dos LX-90, dos Madredeus, dos discos a solo do Carlos Maria... Mais tarde até mesmo a Ovelha Negra do Paulo Pedro Gonçalves...
Os cinco soldados mencionados no álbum Mãe eram pessoas que trabalharam para um fim comum mas tinham vontades e expressões autónomas. O que os juntou foi também o que os separou. Mesmo assim podem-se sentir variadas marcas da banda em todos esses projectos.

Porque nunca se reuniram? E alguma vez o poderão fazer?
Preferimos continuar amigos uns dos outros e dia 25 deste mês iremos todos comemorar essa entrada no palco do Rock Rendez Vous há 30 anos. Guitarras, cantores, trompetes, tambores. Paixão. E mais do que um punhado de canções que ficam para a história. Afinal valeu a pena.