segunda-feira, outubro 03, 2011

A sociedade do Facebook

A Rede Social (2010), de David Fincher

O New York Times chamou-lhe "fazedor do gosto" [tastemaker]: as recentes mudanças do Facebook potenciam uma multiplicação do efeito de exposição social que importa repensar, repensando o próprio conceito de rede – este texto foi publicado no Diário de Notícias (2 Outubro), com o título 'O que é o "social" das redes sociais?'.

No princípio deste ano, quando estreou A Rede Social, de David Fincher, surgiram algumas reacções de bizarro menosprezo: era “apenas” a história de uns miúdos a inventar coisas nos computadores... Mesmo compreendendo a diversidade de juízos de valor que o filme possa suscitar (que me parece ser uma das obras-primas do século XXI), talvez seja importante relembrar que a saga de Mark Zuckerberg e do nascimento do Facebook é mesmo, até certo ponto, a “história de uns miúdos a inventar coisas nos computadores”. Com um efeito que, afinal, contaminou o planeta inteiro: a consagração da noção de rede social.
Lembrei-me de tais peripécias, e do seu efeito restritivo na discussão do filme de Fincher, a propósito da recente reconfiguração do Facebook. Subitamente, as novidades anunciadas por Zuckerberg desencadearam uma reacção de preocupação, também ela planetária: não estará o Facebook a contribuir para a consagração de uma sociedade em que cada indivíduo já não existe como “coisa” singular e irredutível, mas apenas como peão de uma teia (uma rede, precisamente) que regista, divulga e potencia os seus links virtuais?
Há algo de pueril neste coro de reacções e na sua paternal inquietude. De facto, nada do que está a acontecer é estranho àquilo que o Facebook é desde a sua mais remota concepção (o filme de Fincher aborda, justamente, esse processo). Ou seja: um sistema de circuitos e infinitas derivações em que cada utilizador se vai desvanecendo numa identidade mais ou menos partilhada.
Bem sei que dizer isto sim atrai, de imediato, as mais baixas formas de estupidez e denúncia: questionar o funcionamento do Facebook (e das chamadas redes sociais) é mesmo muitas vezes apontado como um gesto decrépito contra a “transparência” e o “progresso”. Digamos, para simplificar, que nada disto é muito diferente do problema da vida social do automóvel: o facto de usarmos automóveis há mais de um século não nos impede, felizmente, de enunciar, interrogar e pensar os seus efeitos práticos e civilizacionais.
Talvez possamos deslocar um pouco o debate e colocar na lista dos nossos temas algo mais do que a exaltação cega das “redes”. A grande questão que o seu funcionamento instalou na nossa vida excede o infantilismo de multiplicar links... por nada! A grande questão é o conceito de colectivo que, desse modo, se produz. Para lá fascínio beato do “estar em rede”, importa lidar com uma pergunta muito primitiva: nas redes sociais, o que é o “social”?
O Facebook existe como um dos mais poderosos aparelhos de “socialização” que a humanidade já conheceu. Muito para além daquilo que algumas religiões esperam dos seus fiéis, há nele uma lógica de normalização e partilha de actos, gestos e gostos, como se, simbolicamente, não existisse vida fora do Facebook. É esta realidade social que importa discutir. E, se for caso disso, habitar.