segunda-feira, abril 04, 2011

A televisão que ninguém discute


Um dos sintomas mais lineares, e também mais preocupantes, da nossa crise política é a indiferença da maioria dos políticos perante o papel social da televisão — este texto foi publicado no Diário de Notícias (3 de Abril).

Já sabemos que a televisão que existe não está na agenda de nenhum partido político. Ciclicamente, há um qualquer anjo da guarda que, em nome da politica “social” do seu partido, vem lembrar os perigos das imagens de “sexo” e “violência”... fingindo pensar aquilo que, em boa verdade, nem sequer se preocupa em tentar descrever. Na prática, mesmo se podemos encontrar algumas vozes que não abdicam de discutir a “transparência” televisiva, os partidos, à direita e à esquerda, distinguem-se por uma militante indiferença perante um dado incontornável da nossa vida colectiva. A saber: o poder das linguagens televisivas na configuração prática e simbólica do nosso mundo e, por isso mesmo, nas relações humanas.
Há uma legitimação perversa deste estado de coisas que provém, não por acaso, da própria aparelhagem ideológica que sustenta os valores dominantes do imaginário televisivo. Assim, de acordo com tais valores, para além de se rotular qualquer tentativa de pensar a televisão como uma manobra provocatória de “intelectuais” ociosos, faz-se passar uma ideia estupidamente apaziguadora. A saber: o estado das coisas televisivas seria, em Portugal, uma mera duplicação do que acontece em qualquer pais civilizado, nomeadamente na Europa. Lá fora ninguém discute a televisão, porque não há nada para discutir...
Vem a propósito citar algumas palavras de François Jost, professor da Sorbonne que mantém o blog “Compreender a televisão”, do jornal Le Monde. Apresentando a mais recente edição da revista Télévision (editada pelo Centre National de la Recherche Scientifique), Jost explica a motivação do seu título global: “Que cultura para a televisão?”. Trata-se, assim, de reagir ao conceito comum, pueril e paternalista, que insiste em avaliar de modo instrumental a cultura que se pode “encaixar” nas programações televisivas. A questão, na verdade, é outra: não de perguntar “se a cultura na televisão é possível”, mas sim de “interrogar a concepção que a televisão tem da cultura”.
Formular tal interrogação é tocar num tema que, por princípio, muitos profissionais televisivos, em particular da área da informação, evitam enfrentar: o do papel da televisão, não como eventual “difusor” de cultura, mas sim como o principal, mais forte e mais agressivo agente cultural das sociedades contemporâneas.
Os efeitos correntes de tal silêncio são devastadores (há várias décadas!!!). Exemplo próximo é o obsceno silêncio que se abateu sobre o filme E o Tempo Passa, de Alberto Seixas Santos. Já sabíamos que, também pela classe política, circula um discurso de ódio contra o cinema português. Ficámos a saber um pouco mais: um filme empenhado em discutir o universo das telenovelas e a relação dos mais jovens com as suas componentes é, para muitos, políticos e jornalistas, um objecto dispensável.