domingo, agosto 29, 2010

Irène (Tunc) por Alain Cavalier

Reescrever o nome de quem perdemos é uma fatalidade, quer dizer, tem o sabor da ficção — este texto foi publicado no Diário de Notícias (28 de Agosto), com o título 'Um grande filme intimista feito com uma pequena câmara digital'.

O mínimo que se pode dizer do filme Irène, de Alain Cavalier, é que se trata de um invulgar objecto cinematográfico. Desde logo, porque o realizador o filmou, ele próprio, com uma pequena câmara digital, idêntica a tantas outras que, hoje em dia, são utilizadas pelos amadores de todo o mundo. Depois, porque nos apresenta uma memória pessoalíssima, centrada na personagem verídica que o título nomeia.
Irène Tunc [foto] foi uma figura muito popular na França dos anos 50. A sua beleza enigmática trouxe-lhe, em 1954, aos 19 anos, o título de Miss França. Rapidamente se tornou uma presença regular em produções cinematográficas de França e Itália. E se é verdade que nunca adquiriu um estatuto de estrela, sendo normalmente solicitada para pequenos papéis secundários, o certo é que acabou por ser dirigida por alguns mestres, incluindo Sacha Guitry (Si Paris Nous Était Conté, 1956), Jean-Pierre Melville (Amor Proibido, 1961) e Alain Resnais (Je t’aime, Je t’aime, 1968). Casou-se com Alain Cavalier em 1965, vindo a participar no seu filme A Chamada (1968), protagonizado por Catherine Deneuve e Michel Piccoli.
A vida de Irène Tunc terminou abruptamente a 16 de Janeiro de 1972, num acidente de automóvel na zona de Versalhes (o seu derradeiro papel seria, um ano antes, em As Duas Inglesas e o Continente, de François Truffaut). Cavalier evoca-a no seu filme, não exactamente para traçar um retrato biográfico (nem sequer para atender a algumas especulações que, na época, admitiam a possibilidade de um gesto suicida): Irène é, afinal, um relato intimista que tem como ponto de partida os diários do próprio cineasta, com datas de 1970, 1971 e 1972, quase exclusivamente dedicados à sua vida conjugal e, em particular, à tristeza insuperável que ele encontrava na sua mulher.
Alain Cavalier [foto] foi um compagnon de route dos autores da Nova Vaga, tanto mais que a sua primeira longa-metragem, Duelo na Ilha (1962), surgiu em momento de eufórica afirmação desse movimento que estava a revolucionar o cinema, dentro e fora das fronteiras francesas. O certo é que a sua evolução o encaminhou para uma crescente solidão criativa, apenas interrompida pelo sucesso de Thérèse (1986). Em todo o caso, não deixa de ser interessante referir que Irène (estreado na secção “Un Certain Regard” do Festival de Cannes de 2009) acaba por ilustrar um princípio fundador da Nova Vaga: mais do que um retrato do mundo exterior, o filme é entendido como reflexo privilegiado de uma vivência interior, dramática, por vezes convulsiva, que o realizador exprime na primeira pessoa.
As pequenas câmaras digitais, utilizadas por Cavalier em vários filmes da última década, são sintomáticas de um gosto de experimentação de novas técnicas, também ele indissociável da herança da Nova Vaga. São, afinal, uma maneira de produzir filmes incomparavelmente mais baratos que qualquer grande produção dependente da acumulação de efeitos especiais. Para Cavalier, essa é também uma forma de sublinhar o seu intransigente individualismo.