sexta-feira, fevereiro 26, 2010

Do jornalista como extraterrestre

WILLIAM KLEIN
Broadway and 103rd Street / New York
1954-55

A. A ideologia jornalística dominante — em grande parte sustentada por modelos narrativos televisivos — conseguiu instalar uma espécie de nojo quotidiano que, todos os dias, instila nos cidadãos uma visão anarco-infantil: a política e a economia mantêm laços vergonhosos e, através deles, estão a corromper a pureza do nosso mundo.

B. Haverá, por certo, muitas razões para nunca desistirmos de questionar o funcionamento da política, os circuitos da economia e todas as suas alianças explícitas ou ocultas. Mas o mais inquietante são os efeitos secundários dessa ideologia. Quais? Os que tentam desenhar uma imagem do jornalista como uma entidade angelical e assexuada que consegue essa proeza sobre-humana de não ter nada a ver com política nem economia. Verificamos, assim, que nos querem convencer que o jornalista é aquele que, além de se manter numa castidade sobre-humana e incontestável, possui o poder divino (et quand même...) de olhar política e economia como um observador distante que contempla, altivo, o movimento de outro planeta que não o seu.

C. Seria apenas estupidamente anedótica essa imagem de um ser humano (jornalista ou não) esterilizado de toda a contaminação político-económica. O certo é que tal imagem do jornalista como extraterrestre está a destruir, lenta e inexoravelmente, o papel democrático do jornalismo. Como? Desmembrando o jornalismo como câmara de eco da pluralidade e contradições da nossa vida em colectividade e obrigando-o a existir como uma fábrica quotidiana de histeria.

Post-scriptum - Tristemente, a maioria dos jornalistas não se tem mostrado disponível para discutir esta conjuntura. Mas se alguém se lembrar de regressar às cavernas, perguntando se a "violência" do último filme de Martin Scorsese pode ser perniciosa para as nossas crianças, aí acorre logo uma multidão para salvar a pátria...