domingo, fevereiro 28, 2010

Tele-futebol + tele-política

Em televisão, fala-se de futebol ou de um inevitável... destino? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (26 de Fevereiro), com o título 'Filosfia da verdade'.

No passado sábado [20 de Fevereiro], o primeiro golo do jogo Everton-Manchester United, da Premier League (SportTV), foi dos visitantes, aos 16 minutos, marcado por Berbatov. Três minutos depois, Bilyaletdinov empatou, suscitando esta observação ao comentador: “(...) Não que o Everton tenha feito muito por isso.” Quase apetece inverter o maniqueísmo da frase, acrescentando que o Everton tinha o direito de utilizar os 71 minutos que faltavam para “fazer alguma coisa por isso...” (tanto mais que conseguiu uma brilhante vitória por 3-1).
Mas não é disso que se trata. Importa mesmo insistir na recusa desse ziguezague de frases feitas que tende a reduzir as maravilhas do futebol ao cumprimento de um “destino”. Poderia até ter acontecido que o Everton tivesse jogado ainda pior do que aquilo que vemos em alguns jogos da Liga portuguesa... Qual era o problema? O que se discute, aqui, é a transformação da televisão num instrumento de normalização do mundo, a ponto de se querer impor o olhar (televisivo) como detentor de uma filosofia da verdade que não admite recuo, recurso ou variações. Como quando se diz essa coisa espantosa que é: “Aceita-se este golo...” Como? Aceita-se? E não aceitando, que devemos fazer? Recomeçar o jogo? Insultar o árbitro? Invadir o campo?
Escusado será dizer que a questão, frívola nos seus sinais, mas filosoficamente decisiva no papel social da televisão, excede (e muito!) os espaços específicos do futebol. Estamos a viver um exemplo directo disso mesmo, com a agitação gerada pela divulgação de escutas que, directa ou indirectamente, envolvem personalidades da cena política. Do ponto de vista filosófico, precisamente, mas também ético e jornalístico, é espantoso verificar que o próprio facto (a publicação das escutas) seja suprimido da maior parte dos debates. Em seu lugar, triunfa a noção segundo a qual a televisão pode funcionar como uma montra transparente de exposição e, mais do que isso, de produção da verdade. É uma ambição desmedida que já foi apanágio de algumas igrejas.

Cinema no Grande Auditório

N.G.: A relação da música com o cinema é na verdade anterior ao dia em que Al Jolson se fez ouvir no grande ecrã, em The Jazz Singer. Esta foi, de resto, uma das mais frutuosas relações entre artes ao longo de todo o século XX, juntando contribuições de nomes como Shostakovich, Prokofiev, Copland, Bernstein, Glass, entre tantos outros mais… O que a Orquestra Gulbenkian nos mostrou, em duas noites consecutivas (sexta e sábado) foi, sob a direcção de Lawrence Foster, um olhar adiante das mais “canónicas” histórias de colaboração entre os nomes que habitualmente escutamos nas salas de concerto e o cinema. Da memória clássica de Hollywood escutaram-se (em grande parte dos casos em suites nascidas das bandas sonoras originais), obras assinadas por compositores que conheceram no cinema destino central de parte significativa da sua obra. O lirismo da música de Lili, de Bronislaw Kaper, o assombro de Sunset Boulevard, por Franz Waxman, o paisagismo e dinamismo do Oeste em The Alamo, de Dimitri Tomkin, ou o tom épico que acompanhou as aventuras de Robin Hood, sob partitura de Erich Korngold. Sob direcção viva, dinâmica, a orquestra quase convocou imagens (e certamente evocou memórias dos filmes revisitados) na segunda parte de um programa que começou ao som de uma música de um tempo em que as imagens ainda não se criavam em movimento (o Concerto em si bemol Maior, para violino e violoncelo, cordas e baixo contínuo, RV, 547 de Vivaldi), mas que passou depois pela música de Miklós Rósza (que também compôs para o cinema) e de Saint-Saëns, aqui numa espantosa La Muse et le Poète, peça que assinou depois de terminada a sua primeira (e única) aventura para o cinema. Destaque-se ainda, na primeira parte, a segura contribuição dos solistas – Pinchas Zuckerman (violino) e Amanda Forsyth (violoncelo) – que juntaram importantes personagens a um filme que soube bem ouvir.

J.L.: Há uma ponte simbólica — mas também formal e conceptual — que liga a música de cinema (e, em particular, as bandas sonoras de Hollywood) ao mundo tradicional da sala de concertos. A proposta da Orquestra Gulbenkian nestes dois concertos foi tanto mais interessante quanto sublinhou, implicitamente, a importância da idade clássica do cinema americano. Entre o filme mais antigo, As Aventuras de Robin dos Bosques, e o mais recente, The Alamo, havia uma distância de pouco mais de duas décadas (1938-1960), afinal as que balizam um cinema que vai da plena integração do som (e da cor) até ao desmembramento das estruturas fundadoras dos grandes estúdios e à abertura da concorrência com a televisão. Dos temas apresentados, curiosamente, apenas Lili (1953) pertence ao domínio específido do musical, surgindo Sunset Boulevard (1950) como um espelho cruel de Hollywood, rasgando as primeiras vias para uma nostalgia habitada por um profundo sentimento trágico.

A visão de um grande sinfonista

Um dos maiores sinfonistas do século XX, o finlandês Jean Sibelius (1865-1943) vê agora a integral da sua obra sinfónica editada numa caixa de quatro CD, em gravações ao vivo pela London Symphony Orchestra, dirigida por Sir Colin Davis. As sete sinfonias, às quais se junta Kullervo, foram já editadas em discos separados, a caixa propondo uma visão de conjunto que sublinha, perante espantosas interpretações, a visão e personalidade de um compositor que vincou a sua personalidade, mesmo perante um clima musical por vezes rumando em sentido bem diferente do seu.

Sibelius é um entre os grandes compositores nacionalistas que a música europeia conheceu na fronteira entre os século XIX e XX. E, sobretudo numa etapa em que a Finlândia estava ainda sob domínio russo, alguns dos seus primeiros poemas sinfónicos chegaram a iluminar com fulgor a alma política dos que desejavam a independência. A sua obra sinfónica, contudo, mesmo reflectindo por vezes sobre marcas da cultura e dos cenários geográficos locais, procurou essencialmente uma demanda musical. Sibelius só experimentou a sinfonia depois dos 30 anos, a primeira (de 1899) ainda revelando sinais de admiração por referências maiores, sobretudo Tchaikovsky (mas também Bruckner e Berlioz). A obra ganha fôlego de então em diante, procurando um caminho próprio, herdeiro de um sentido clássico, mas firme numa busca pessoal. A Sinfonia nº 3, por exemplo, segue caminho oposto à grandiosidade mahleriana, propondo uma orquestra mais pequena e uma linguagem menos exuberante. O tom épico da magnífica Sinfonia nº 2, as assombrações da Sinfonia nº 4 (a que chamou ‘Sinfonia Psicológica’) ou a melancolia que passa pela Sinfonia nº 6 são destinos distintos que partilham em comum uma linguagem firme e uma personalidade ímpar entre os outros grandes compositores do seu tempo.

O último Alix (de Jacques Martin)

O vigésimo oitavo volume das aventuras de Alix foi o último que Jacques Martin, o criador da personagem, acompanhou. Martin contribuíra com desenhos, pela última vez, em Ó Alexandrie, de 1996 e com texto apenas seu até Roma, Roma (de 2005). Tal como sucedera nos três volumes anteriores, mantinha sob sua assinatura a concepção da obra, partilhando a escrita com Patrick Weber e entregando os desenhos a Ferry (na sua estreia na série). La Cité Engloutie devolve Alix a terras gaulesas, numa aventura que o leva (e a Enak) a uma cidade-fortaleza onde velhos costumes ditam o quotidiano. No início da aventura encontramos uma legião romana que procura uma outra, dada como perdida. Esta, acampada numa floresta e sem comunicações com o exterior, aguarda por reforços que lhe permitam continuar a campanha. A floresta que serve de cenário esconde gauleses que, com base na mítica cidade costeira de Tarania, guardam como seu maior tesouro velhos textos celtas… O tutano de toda a história gira em torno deste saber acumulado e da forma como é utilizado por quem o guarda.

E chegados a 1970...

Discografia Beatles - 60
'Let It Be' (single), 1970

O derradeiro single dos Beatles, editado com o grupo ainda publicamente reconhecido como unido, apresentou uma canção com uma história que remonta aos dias do álbum branco e que fora gravada em inícios de 70 durante o projecto Get Back, que entretanto havia sido guardado na gaveta. Composição de McCartney que dada de um período tenso vivido em 1968, Let It Be foi das primeiras canções registadas frente às câmaras nos estúdios em Twickenham, contando além dos quatro Beatles com a presença de Billy Preston (órgão e piano eléctrico) e, na versão editada em single, com Linda McCartney nos coros. Editada numa versão com produção creditada, a versão do single é diferente da que, meses depois, surgiria no álbum com o mesmo título. No lado B surge um inédito, You Know My Name (Look Up The Number), gravada em várias sessões entre 1967 e 69. O single atingiu o primeiro lugar em vários territórios, falhando contudo o número um no Reino Unido.

sábado, fevereiro 27, 2010

"Exile on Main St." + inéditos

É o álbum de temas clássicos como Rip This Joint, Tumbling Dice, Happy, All Down the Line e Shine a Light — um dos clássicos absolutos da discografia dos Rolling Stones e também uma das obras-primas geradas na cumplicidade do rock'n'roll com o mundo do blues: Exile on Main St. (1972) está de volta, em Maio, com edição recheada de inéditos + o documentário Stones in Exile [notícia na Rolling Stone]. Não é preciso muita imaginação para anteciparmos um dos eventos discográficos do ano.

>>> Tumbling Dice, 1972.

Vida e morte dos golfinhos

A Baía da Vergonha utiliza o registo documental para dar conta de uma situação chocante nas relações entre os seres humanos e o mundo animal — este texto foi publicado no Diário de Notícias (26 de Fevereiro).

É muito provável que o facto de A Baía da Vergonha (título original: The Cove) ser um filme sobre golfinhos leve alguns espectadores a imaginar uma aventura mais ou menos radiosa, com muitos voos aparatosos nas águas dos oceanos. De facto, estamos perante algo bem diferente: um filme cru e dramático, por vezes profundamente perturbante, sobre o modo como os golfinhos são tratados, ou simplesmente assassinados, nas águas de Taiji, no Japão. Quando do seu lançamento nos EUA, The Wall Street Journal chamou-lhe mesmo “um filme de terror sobre golfinhos”.
Importa sublinhar que se trata de um documentário. Mais do que isso: A Baía da Vergonha desenvolve-se como um inquérito, de tipo jornalístico, tentando perceber porque é que Taiji se apresenta como um lugar de celebração dos golfinhos e do seu habitat, ao mesmo tempo que as autoridades locais bloqueiam todas as formas de acesso ao que acontece na baía a que o título do filme se refere. Na prática, Taiji funciona como um centro de apanha e abate ao serviço de uma indústria que movimenta muitos milhões de dólares: os golfinhos são encurralados na baía, muitos deles mortos com lanças e facas (a sua carne é vendida num mercado cuja transparência o filme contesta), enquanto outros são capturados para serem vendidos a parques de diversão em todo o mundo.
Daí que este seja também um relato com as características de uma aventura recheada de atribulações. Somos, assim, confrontados com o trabalho de uma equipa de filmagens que teve de inventar formas peculiares para registar os “bastidores” de Taiji, colocando câmaras em lugares quase inacessíveis, por vezes correndo sérios riscos físicos.
Um aspecto que confere especial acuidade factual e força moral ao filme é o facto de um dos seus protagonistas ser Ric O’Barry [foto] (69 anos), explorador marítimo que, há mais de 40 anos, treinou os golfinhos da série televisiva Flipper (produção da NBC, originalmente emitida em 1964/67). Como ele próprio confessa, foi o contacto com os animais (e o facto de um deles lhe ter morrido, literalmente, nos braços) que o transformou num activista, defensor tenaz dos direitos dos golfinhos, denunciando todas as formas de cativeiro a que são sujeitos. A esse propósito, O’Barry lembra, por exemplo, que os golfinhos, tantas vezes fechados em tanques do tamanho de piscinas, são animais que, nos oceanos, percorrem algumas dezenas de quilómetros... por dia!
Realizado por Louie Psihoyos (53 anos), fotógrafo e documentarista com uma carreira ligada à National Geographic, A Baía da Vergonha é um dos fenómenos recentes do documentarismo cinematográfico, conseguindo mesmo a proeza de estar nomeado para o Oscar de melhor documentário (cerimónia a 7 de Março). Aliás, a sua lista de distinções é impressionante, começando com o prémio do público do Festival de Sundance de 2009. Depois disso, A Baía da Vergonha já foi reconhecido como melhor documentário do ano pelos sindicatos americanos de produtores e realizadores e ainda por várias associações de críticos, incluindo a National Board of Review.

Ultravox, 1980

Mais uma memória com 30 anos, continuando assim a evocação do movimento neo-romântico que temos vindo a apresentar. Passagem hoje pelo tema-chave do álbum que, em 1980, assinalou o arranque de uma segunda etapa na carreira dos Ultravox. Tinham já discografia editada desde 1976, numa formação com John Foxx como vocalista, tendo representado importante esforço pioneiro na criação de uma pop apostada em explorar as novas potencialidades dos sintetizadores. Com o afastamento de John Foxx, o grupo reinventou-se com o leme entregue a Midge Ure, que então partilhava trabalho com os Visage. Vienna foi o primeiro álbum sob nova formação, seguindo caminhos próximos dos demais grupos neo-românticos, ajustando uma imagem sofisticada a um som que cruzava uma intensidade new wave (com guitarras e gosto pela dança) com cenários definidos pelas electrónicas. Aqui fica o tema-título desse álbum de 1980.



Ultravox
‘Vienna’ (1980)

Começar a olhar para o passado

Discografia Beatles - 59
'Hey Jude' (compilação), 1970

Editada em Fevereiro de 1970, a compilação Hey Jude juntou no formato de LP uma série de temas originalmente apenas editados no formato de singles. O alinhamento não incluiu apenas os singles mais recentes, recuando mesmo a temas dos tempos de A Hard Day’s Night. O disco esteve para ter como título Beatles Again, mas acabou editado com o nome de um dos mais recentes grandes êxitos dos fab four. Hey Jude teve edição em vários territórios (entre os quais os EUA) mas, na era do CD, uma vez que as canções nele contidas surgiam divididas entre A Hard Day’s Night e Past Masters, acabou por nunca conhecer edição digital.

sexta-feira, fevereiro 26, 2010

Do jornalista como extraterrestre

WILLIAM KLEIN
Broadway and 103rd Street / New York
1954-55

A. A ideologia jornalística dominante — em grande parte sustentada por modelos narrativos televisivos — conseguiu instalar uma espécie de nojo quotidiano que, todos os dias, instila nos cidadãos uma visão anarco-infantil: a política e a economia mantêm laços vergonhosos e, através deles, estão a corromper a pureza do nosso mundo.

B. Haverá, por certo, muitas razões para nunca desistirmos de questionar o funcionamento da política, os circuitos da economia e todas as suas alianças explícitas ou ocultas. Mas o mais inquietante são os efeitos secundários dessa ideologia. Quais? Os que tentam desenhar uma imagem do jornalista como uma entidade angelical e assexuada que consegue essa proeza sobre-humana de não ter nada a ver com política nem economia. Verificamos, assim, que nos querem convencer que o jornalista é aquele que, além de se manter numa castidade sobre-humana e incontestável, possui o poder divino (et quand même...) de olhar política e economia como um observador distante que contempla, altivo, o movimento de outro planeta que não o seu.

C. Seria apenas estupidamente anedótica essa imagem de um ser humano (jornalista ou não) esterilizado de toda a contaminação político-económica. O certo é que tal imagem do jornalista como extraterrestre está a destruir, lenta e inexoravelmente, o papel democrático do jornalismo. Como? Desmembrando o jornalismo como câmara de eco da pluralidade e contradições da nossa vida em colectividade e obrigando-o a existir como uma fábrica quotidiana de histeria.

Post-scriptum - Tristemente, a maioria dos jornalistas não se tem mostrado disponível para discutir esta conjuntura. Mas se alguém se lembrar de regressar às cavernas, perguntando se a "violência" do último filme de Martin Scorsese pode ser perniciosa para as nossas crianças, aí acorre logo uma multidão para salvar a pátria...

Scorsese: o desejo de verdade

MARTIN SCORSESE
Rodagem de "Shutter Island"

O realizador de Taxi Driver filmou mais uma saga sobre a imperfeição humana. De algum modo, Leonardo DiCaprio é o herdeiro de Robert De Niro — este texto foi publicado no Diário de Notícias (24 de Fevereiro), com o título 'A teia da verdade e da morte'.

Em A Última Tentação de Cristo (1988), Martin Scorsese filma Willem Dafoe como o filho de Deus que, embora não renegando o Pai, não pode deixar de formular uma hipótese de grande candura: e se eu não quiser aceder à dimensão divina, contentando-me com as imperfeições deste mundo? Em boa verdade, esse não era um tema especificamente religioso: a sua religiosidade é inerente a toda a obra do autor de sagas de purificação individual como Taxi Driver (1976), Touro Enraivecido (1980) e Bob Dylan: No Direction Homem (2005).
Depois de muitos anos com Robert De Niro, Scorsese encontrou em Leonardo DiCaprio o ambíguo prolongamento da mesma temática. Aos 35 anos, DiCaprio possui a gravidade de um herói clássico, preservando uma fragilidade juvenil que, em Shutter Island, lhe empresta uma comoção radical. Este é um filme filiado no cepticismo filosófico da grande tradição do film noir (Out of the Past, dirigido por Jacques Tourneur em 1947 foi um dos títulos que, durante a preparação, Scorsese mostrou a DiCaprio). A personagem central, mais do que decifrar um mistério, atravessa uma teia tecida por dois princípios cruéis: por um lado, o desejo de verdade é uma lei inelutável do ser humano; por outro lado, não é possível viver esse desejo sem que, em algum momento, enfrentemos a nitidez da morte. Daí que se aconselhe o espectador a não revelar os enigmas de tão prodigioso exercício de cinema, na certeza de que raras vezes um realizador nos interrogou de forma tão directa: afinal, como podemos definir o real?

Sexo por palavras

É interessante recordar que há toda uma tradição cinematográfica francesa — centrada na obra de Eric Rohmer — que trata as palavras como matéria fulcral das relações humanas, mesmo quando o seu tema é o indizível. O filme Consultórios de Deus (título original: Les Bureaux de Dieu) não será um produto directo de tal tradição, pelo menos enquanto tradição romanesca, mas não deixa de integrar as palavras como elemento decisivo de uma conjuntura precisa. Dito de outro modo: num consultório de planeamento familiar — onde se trata de sexualidades, métodos contraceptivos e interrupções voluntárias da gravidez, o que há mais são... palavras. E o filme é sobre isso mesmo: o modo como se fala daquilo que, não poucas vezes, por razões sociais, culturais ou especificamente familiares, é objecto de resistência e recalcamento. Dirigindo um magnífico leque de actrizes (Nathalie Baye, Nicole Garcia, Isabelle Carré, Béatrice Dalle, etc.), Claire Simon consegue, além do mais, criar um tom de ambiguidade documental através do qual se reforça a actualidade e a pertinência das questões abordadas.

>>> Quinzena dos Realizadores (Cannes 2008): Les Bureaux de Dieu.

Jornalismo: a questão da objectividade

OTTO DIX
Auto-retrato como soldado
1914

O recente post 'Jornalismo: o mito da neutralidade' suscitou um mail de Paulo Pena (jornalista da Visão), lembrando a necessidade de pensar também a questão da objectividade no trabalho jornalístico — questão delicada e complexa, sem dúvida, que esse trabalho nunca pode descartar. Agradecendo a intervenção, aqui fica o essencial da sua proposta de reflexão:

Não há neutralidade, nem deve haver, quando se trata de informar. Imaginemos um absurdo: sobre o Holocausto, neutral seria aquele jornalista que desse igual destaque à perspectiva «histórica» e à perspectiva «negacionista»? Isso seria absurdo.
No entanto, concordando com a impossibilidade, e com o erro, da neutralidade, não poderei concordar com a aplicação do mesmo argumento à «objectividade». Dito de uma forma simples (cito livremente alguns autores americanos, como Walter Lippman ou Bill Kovach), o jornalista não é, não pode ser, «objectivo», mas o seu método sim. O método da «verificação dos factos» deve ter como finalidade a descoberta da verdade e, para tal, deve integrar uma ideia de «equilíbrio» e de «justiça». Só assim, sem a ilusão da neutralidade, mas com uma salvagurada do seu próprio juízo sobre os factos, se pode conter o preconceito. Basta ler a imprensa, ou ver a TV, hoje, para perceber como a ideia, certa, do «mito da neutralidade», abre caminho a um nihilismo ético, uma espécie de cinismo…, de muitos jornalistas.

Paulo Pena

Da Noruega, e para dançar

São noruegueses, chamam-se Casiokids e acabam de editar um novo álbum de originais (disponível em ainda muito poucos territórios, é certo). Hoje, contudo, com fim-de-semana à porta, deixamos aqui um teledisco ainda de 2009, com um tema desta banda que é, no mínimo, um irresistível convite à dança. Aqui fica Fot I Hose.

Inéditos dos Rolling Stones em reedição

O clássico Exile On Main Street, dos Rolling Stones, vai conhecer nova reedição, contend um CD adicional com 10 temas inéditos da época. Além da versão “standard” haverá uma edição limitada desta reedição, contendo, além do vinil, um DVD com um documentário e um livro de 50 páginas.

Do palco ao grande ecrã

Começa a ser uma tendência. A cada grande digressão, um documentário. O dos Blur, por exemplo, acaba de sair em DVD. E agora é anunciado um com David Byrne, resultado de uma série de olhares, pelos bastidores, mas também pelos palcos, da digressão que se seguiu ao álbum Everything That Happens Will Happen Today, álbum que gravou em colaboração com Brian Eno. A digressão tomou mesmo como nome The Songs Of David Byrne and Brian Eno. O filme, Ride, Rise, Roar, realizado por David Hillman Curtis, terá estreia no próximo mês em Austin (Texas) por ocasião de mais um SXSW.

O trailer de Ride, Rise, Roar pode ser visto aqui

Três olhares por Berlim (4)

Mais três olhares sobre Berlim. As linhas do tram sobre a paisagem em volta de Friedrichstrasse, a torre da televisão vista de Alexanderplatz e espaços em volta da Praça Sony, em Postdamer Platz.

Em conversa: Pantha du Prince (3/3)

Concluímos hoje a publicação de uma entrevista com Hendrik Weber (ou seja, Pantha du Prince), que serviu de base ao texto ‘Memória de uma derrocada nos Alpes inspira disco’, publicado no DN a 8 de Fevereiro.

A ideia de, um dia, trabalhar com uma orquestra, parece-lhe interessante?
O problema é que a orquestra pode ser, para mim uma fonte de sons algo limitada. Gostaria que uma orquestra estivesse porém aberta à ideia de fazer sons com os instrumentos. Gostaria de o fazer, mas teria de ser com uma orquestra que possa tocar ideias mais imaginativas. Por exemplo, tocar o som de um desmoronamento... Abordar o som de uma forma diferente... Mas isso é para mim algo difícil de imaginar.

Conhece o trabalho que a Deutsche Grammophon tem feito com músicos nas áreas das electrónicas [na série Re-Composed]?
Com o Moritz Von Osvald? Sim, conheço. E gostei muito. Mas eles usaram apenas as velhas gravações de Karajan. Por isso basicamente trabalharam sobre essas gravações.

Gostaria, antes de explorar a orquestra a tocar a sua música, é isso?
Gostaria de contar com uma orquestra como uma fonte de som e não na forma de uma gravação. Mas aquele trabalho que fizeram tem referências muito concretas. É baseado numa obra concreta. Tem mais ver com o reconstruir, com o recompor... São abordagens diferentes à própria história da gravação e dos aparelhos técnicos ao seu serviço. Mas há toda uma outra história associada a tudo o que ali acontece. Eu poderia também fazer recomposições. Mas teria de ter o material certo, o momento certo, a gravação certa e o maestro certo nessa gravação. São muitos aspectos que podem fazer o trabalho ou interessante ou aborrecido. Mas não desafiante nem ajustável a Pantha du Prince. Poderia imaginar-me a trabalhar com uma orquestra que lidasse com as coisas de uma forma moderna. Tenho um primo violoncelista e até cheguei a planear trabalhar com ele e com uma orquestra... Mas por vezes é difícil. A música clássica é outra história... É outro género... É preciso encontrar pessoas com mentalidade aberta.

Uma das imagens do 'booklet' de Black Noise

Sente que há por vezes cepticismo nestas possíveis experiências entre espaços musicais de géneros distintos?
As coisas estão a mudar gradualmente. Estaremos num outro patamar daqui a dez anos. Até porque abre à nova música. Mas no fim tudo isto tem a ver com uma ideia de territorialidade. Os músicos lutam para manter o seu território. Têm sempre um pouco de medo da música pop, da música electrónica, do techno... Há muita gente a vir a concertos e sair para dançar... Nós não temos quaisquer apoios estatais. E para eles importa manter os apoios que têm. Daí terem de manter o sistema vivo...

Há 30 anos havia quem ouvisse os Kraftwerk e dissesse que não era música, que eram máquinas...
Exactamente....

Acredita na mudança...
Temos de ver as complexidades sociais e políticas da música. Há cenas que tentam sobreviver. Tem a ver com selecção... E sobre excluir... Mas há quem esteja aberto... Tenho um amigo que é maestro. Há gente interessante por aí.

O que espera que os anos dez tragam à música?
Espero que consigamos trazer uma noção de espaço para a música. Viver a música como algo que tem um espaço. Como creio que acontecerá nas artes visuais, que vão seguir numa direcção tridimensional. Espero que isso aconteça na música. Que se sinta o som a mudar quando se entra numa sala. Ter a possibilidade de trabalhar o espaço. Trabalhar a tridimensionalidade. E espero que as discotecas e as salas de concerto possam explorar estas possibilidades fazendo da música algo mais físico e mais vivo. Distribuir os sons pelo espaço e criar experiências, abrir novas perspectivas e permitir descobertas.

Helmut Newton: "Sumo" (versão light)

Digamos que é uma notícia de peso, ma non troppo... Está de volta Sumo, o livro de Helmut Newton (1920-2004) que, na edição original, media 50 cm x 70 cm, pesava 35,4 quilos e necessitava de uma base metálica para ser pousado e manuseado. Agora, a editora Taschen assinala os dez anos do aparecimento de Sumo em versão mais ligeira, formato 26,7 cm x 37,4 cm, embora incluindo também uma peça de suporte para a sua leitura — a edição original vendia-se a 10 mil euros; a nova edição custa 99,99 euros.
É uma síntese delirante da obra de um dos maiores fotógrafos do século XX — retratista cool da nitidez da morte, Newton foi um artista que se moveu com nonchalance através dos mais diversos domínios criativos, circulando sem preconceitos através de revistas, museus, moda e publicidade: do retrato ao nu, do calor da pele à frieza do metal.

>>> Site da editora Taschen: página de Sumo.
>>> Site oficial de Helmut Newton.



quinta-feira, fevereiro 25, 2010

Scorsese: os espaços em branco

Leonardo DiCaprio toma notas de quê? E para quê? Ou ainda: Shutter Island é um filme sobre a decifração das aparências ou o assombramento dos factos?
Digamos, para simplificar, que não há aparência que não esteja assombrada. Martin Scorsese é o cineasta dessa ambivalência, até mesmo na contemplação da morte — sobretudo na contemplação da morte.
É bem certo que vivemos num mundo em que, todos os dias, a cultura televisiva nos tenta convencer que olhar o mundo é o mesmo que fazer palavras cruzadas — tudo acabaria por fazer sentido, e esse sentido tudo fecharia numa certeza sem espaços em branco. Shutter Island é uma prodigiosa adaptação de um espantoso romance de Dennis Lehane e, nessa medida, uma genial revisitação da tradição do film noir. Mas é também um objecto de resistência a essa cultura triunfante que transforma sinais de superfície em certezas transcendentais e "justas" (vivemos, afinal, num mundo em que as televisões querem ocupar os lugares dos tribunais e onde até há comentadores de futebol que falam dos resultados dos jogos em termos de "justiça"...). Este é um filme para vermos e revermos, falarmos e continuarmos a escrever — e também para saborear em silêncio.

>>> Site oficial de Shutter Island.
>>> Vanity Fair: Martin Scorsese responde ao
Questionário de Proust.
>>> Site oficial de
Dennis Lehane.

Discos da semana 2010 (5)

A capa mostra a imagem do que parece ser a memória, algo remota, de uma paisagem idílica. Projectamo-la algures nos Alpes. O interior do booklet, por sua vez, revela fotos, no presente, de uma zona reclamada pela natureza mais de cem anos depois de uma derrocada que apagara uma aldeia alpina do mapa… É deste contraste entre a luz e as trevas que surge a música que o alemão Hendrick Weber apresenta no terceiro álbum que edita como Pantha du Prince. Três anos depois do magnífico This Bliss, que se fez importante referência nos domínios do techno minimal, Black Noise apresenta-se como um decidido passo em frente. Do percurso anterior do alter-ego que o músico alemão tem vindo a criar, o novo disco toma algumas pistas, mas procura ir mais além, sugerindo mais que apenas uma cenografia, um quadro emocional que parte das imagens e das histórias que comportam, juntando elementos instrumentais que vincam o “programa” paisagista que acolhe estes olhares. O disco foi na verdade gravado na montanha cujas imagens compõem o booklet, a relação entre o lugar, a sua história e vivência no presente acabando inevitavelmente por se projectar numa música que transcende, por todos estes referenciais, uma ideia de pura abstracção. Ganha corpo, espaço, tempo. A maior das novidades surge, a meio do alinhamento, numa colaboração com Panda Bear, dos Animal Collective, no que se revel uma peculiar abordagem à canção (com magníficos resultados, sublinhe-se) em Stick To My Side. Black Noise é já um disco a reter entre os momentos que vão certamente marcar a música electrónica de 2010.
Pantha du Prince
‘Black Noise’

Rough Trade / Popstock
4 / 5
Para ouvir: MySpace


Chegaram a ser marcadas datas para Portugal. Mas, canceladas pouco depois, deixaram uma vez mais adiada a estreia em sala de uma digressão dos Pet Shop Boys por estas terras. Não se entende, de facto… É certo que um registo em áudio e vídeo não substitui nunca a experiência de um espectáculo ao vivo. Mas, uma vez mais, é assim que a esmagadora maioria dos que entre nós seguem o mais sólido e inteligente dos grupos pop dos últimos 25 anos vai “viver” a Pandemonium Tour. Apresentado em regime duplo (CD + DVD), Pandemonium é, no mínimo, o retrato de um concerto que, como poucos, sabe entender o mais profundo sentido do que é ser pop. Das canções, que correm várias etapas da obra do duo (com algum protagonismo para as da recente, e gourmet, colheita Yes), juntando uma versão de Viva La Vida dos Coldplay (tal como a cover que em tempo fizeram dos U2, mais saborosa que a versão original), nada apontar senão o facto de estarem no ponto certo. No palco, numa encenação onde as ligações às formas e cores sugeridas na capa de Yes são ponto de partida para magníficas derivações e quadros as canções ganham uma dimensão visual em tudo consequente. Nos extras do DVD há telediscos, um hino de Natal e ainda uma versão de My Girl, dos Madness, ao vivo. O CD apresenta, por seu lado, parte representativa do alinhamento. Perdemos um grande concerto!
Pet Shop Boys
‘Pandemonium’
Parlophone / EMI Music
4 / 5
Para saber mais: site oficial


Em tempos conhecendo uma existência menos visível e em regime de vida pararela aos Okkervil River, os Shearwater são hoje uma banda em tudo “independente”, concentrando o protagonismo das atenções de Jonathan Meibug (que nas horas vagas mantém viva a sua antiga paixão pela ornitologia, que muitas vezes o levou já a missões científicas em várias paragens, sobretudo no hemisfério sul do globo). The Golden Archipelago surge dois anos depois de Rook (talvez o momento maior da obra do grupo) e, partindo dos climas que o haviam dominado, segue num azimute semelhante, revelando apenas mais evidente contrastes entre a placidez e texturas de algumas composições de alma invernal e o ocasional expressar mais vivo e musculado de certas angústias, subindo o tom da voz e a intensidade dos cenários (aqui revelando o que, mais que nunca, se apresenta como ecos de memórias prog rock). Musicalmente continuamos em terreno que não se limita às soluções habituais em terreno indie rock, mantendo a banda o gosto pelo trabalho com outros instrumentos, ensaiando as suas potencialidades em jogos que dão corpo e espaço a estas canções. A capa, de resto, deixa claro para onde vai esta música…
Shearwater
‘The Golden Archipelago’
Matador / Popstock
4 / 5
Para ouvir: MySpace


Há dois anos, com um album de estreia com título invulgarmente longo – Rest Now Weary Head, You Will Get Well Soon – o alemão Konstantin Gropper captava focos de atenção não apenas localmente, mas em vários territórios europeus, colhendo uma série de favoráveis opiniões perante um disco de canções com gosto por uma evidente eloquência (por vezes resvalando para o barroco, é verdade). A música revelava mais uma ideia pop indie de alma sinfonista em clima pós-Arcade Fire, mas com uma mão cheia de canções interessantes a sublinhar que não se tratava de uma mera aplicação de papel químico. Dois anos depois, e com uma presença numa banda sonora de Wim Wenders pelo caminho, um segundo álbum de Get Well Soon vem agora, sem fugir ao rumo antes definido, confirmar tanto o melhor como o pior do que o disco anterior nos mostrara. O melhor? O cuidado nos arranjos e na execução, criando uma noção de teatralidade em canções com uma segura noção de espaço. O pior? Uma talvez equívoca relação com a escrita, numa sucessão de quadros que acabam afinal inconsequentes apesar de convocarem referências a nomes como Séneca ou Herzog. É como uma magnífica encenação de um fraco texto para teatro… E sem o texto, convenhamos, não há peça que resista…
Get Well Soon
‘Vexations’

City Slang / Nuevos Medios
2 / 5
Para ouvir: MySpace


No capítulo das desilusões, os Depeche Mode figuraram entre os autores de um dos maiores discos-tropeção de 2009. E em 2010 os Massive Attack candidatam-se ao mesmo estatuto. Passaram sete anos desde 100th Window… E quase vinte desde o mítico Blue Lines, um dos álbuns mais importantes na definição dos caminhos que a música popular seguiria nos anos 90. A expectativa era portanto enorme. E Splitting The Atom, lançado algum tempo antes como aperitivo, revelara, sem sinais de grandes mudanças é certo, mais um belo encontro entre a canção, o dub e climas assombrados. Heligoland, contudo, revela agora uma banda confortavelmente instalada numa espécie de soma de lugares comuns de si mesma. Não se lhes pede nova revolução. Já fizeram uma. Mas a relação com as suas marcas de personalidade, em vez de experimentarem derivações (como o fizeram em Mezzanine ou 100th Window, o primeiro ensaiando a distorção, o segundo filigranas feitas de electrónicas), optaram pelo que parece mais uma lógica de lounge pront-a-ouvir, candidatando-se o disco a figurar naquele departamento do chique moderno onde rumaram uns Gotan Project ou De-Phazz. Há alguns momentos interessantes, nomeadamente na colaboração com Hope Sandoval ou em Girl I Love You, pelo incontornável Horace Andy. Mas confronte-se esta música com a dos reactivados (e também veteranos) Bomb The Bass e constate-se como uma das mais visionárias bandas de 90 se transformou numa presença quase inconsequente.
Massive Attack
‘Heligoland’

Virgin / EMI Music
2 / 5
Para ouvir: MySpace


Também esta semana:
Marina and The Diamonds, Ali Farka Toure + Toumani Diabate, David Byrne + Fat Boy Slim, Toro Y Moi, Xiu Xiu, Efterklang, Kasper Bjorke

Brevemente:
1 de Março: The Knife, Bomb The Bass, 2 Door Cinema Club, Joanna Newsom, Groove Armada, Chumbawamba, Lightspeed Champion, Blood Red Shoes, Elvis Costello, Lady Gaga (remixes), Andreas Scholl, Rogue Wave
8 de Março: Broken Bells, Gorillaz, Black Rebel Motorcyle Club, Pavement, Liars, Goldfrapp, Visage (best of), New Young Pony Club, Jimi Hendrix, Josh Rose
15 de Março: Jonsi Birgisson, White Stripes, Osvaldo Golijov, Brad Mehldau, Glee (banda Sonora), Jagga Jazzist, She & Him, Love Is All, Mick Karn

Março: Jonsi Birisson, Ruby Suns, Goldfrapp, White Stripes, Titus Andronicus, Jimi Hendrix, Nathalie Merchant, Rogue Wave, Black Rebel Motorcycle Club, Liars, Josh Rouse, Love Is All, She + Him, Broken Bells, Liars, Pavement (best of), White Stripes
Abril: Rufus Wainwright, MGMT, Lali Puna, We Have Band, Apples In Stereo, Trans AM, Paul Weller

PS. Os textos sobre os discos de Pantha du Prince e Shearwater são versões editadas de críticas já publicadas na revista NS

quarta-feira, fevereiro 24, 2010

Jornalismo: o mito da neutralidade

OTTO DIX
Caveira
1924

1. Portugal, Fevereiro de 2010. Um dos sinais mais dramáticos da pobreza (para não dizer vazio) do debate público sobre o papel social do jornalismo é um duplo pressuposto instalado: primeiro, os políticos são potencialmente corruptos; segundo, os jornalistas são obrigatoriamente angelicais.

2. Não é fácil sair deste maniqueísmo, quanto mais não seja porque, encontrando resistência, a ideologia mediática dominante — o seu poder é esse: dominar — tende a empurrar-nos para uma espécie de maniqueísmo simétrico. Como se se tratasse de "demonstrar" que pode haver políticos honestos e jornalistas corruptos...

3. Tudo isso é uma argumentação possível. Mas não chega. De facto, o cerne da questão reside num dos maiores e mais obscenos recalcamentos instalados na sociedade portuguesa: o de que ser jornalista é trabalhar a partir de um lugar imaculado e, mais do que isso, incontestável a que só se pode dar o nome de neutralidade.

4.Ora, ninguém é neutro. Ninguém. A começar pelo jornalista. Como qualquer observador/relator, ele é alguém que escolhe: escolhe o que olhar, de onde olhar, para onde não olhar; escolhe o que dizer, como dizer, como evitar dizer. O que o jornalista produz não é uma "fotocópia" da realidade, mas sim uma construção narrativa (por palavras, imagens, etc.) que existe como uma nova realidade que se vai somar àquela de onde partiu.

5.Reconhecer isto não é lançar nenhuma suspeita sobre a actividade jornalística. Bem pelo contrário: é reconhecer a sua complexidade prática e conceptual, celebrando também a sua imensa responsabilidade narrativa, simbólica e filosófica. Por isso, cada vez que um jornalista nos quer convencer da sua virgindade cognitiva — "olhem para mim a dar-vos um ponto de vista que não podem contestar" —, acontece uma mentira. Não necessariamente factual, mas ontológica.

O cinema visto da Grã-Bretanha

Os prémios BAFTA reafirmaram a visão britânica do mundo do cinema — este texto foi publicado no Diário de Notícias (23 de Fevereiro), com o título '"Avatar" e o resto do mundo'.

É mais que provável que Avatar ganhe o Oscar de melhor filme (a atribuir a 7 de Março). Será a consagração de um fenómeno em que, por definição, Hollywood se reconhece: uma espectacular transformação tecnológica acompanhada de uma boa performance de mercado. Em todo o caso, seria uma pena que a felicidade dos contabilistas de Avatar fosse confundida com o cinema do resto do mundo.
Saúde-se, por isso, a sensibilidade e o bom senso dos prémios da academia britânica. A consagração de Estado de Guerra (The Hurt Locker) e da sua realizadora, Kathryn Bigelow, representa o reconhecimento de um cinema ligado aos temas do presente, dramaticamente enraizado numa dimensão humana de que os actores são a essencial matéria narrativa. Os prémios especificamente nacionais surgem também marcados por um simbolismo exemplar: Fish Tank, de Andrea Arnold (melhor filme britânico) é mais um caso notável de persistência da tradição realista, enquanto Moon/O Outro Lado da Lua, de Duncan Jones (melhor primeira obra), reafirma o espaço e as virtudes de uma produção genuinamente independente.
A maior ou menor coincidência dos BAFTA com os Oscars será uma mera pirueta estatística, curiosa mas irrelevante. A questão de fundo é a reafirmação da indústria britânica como uma máquina que, apesar das tradicionais relações com Hollywood, sabe manter as raízes da sua identidade. Pormenor não secundário: na cerimónia, Richard Attenborough, personalidade lendária do cinema britânico, terminou as suas funções como presidente da academia, sucedendo-lhe o Príncipe William. A austeridade britânica é para ser tomada à letra: para eles, o cinema é uma questão de Estado.

"Celebration" (rock remix)

RE-INVENTION TOUR, 2004

Quem viu — e ouviu — a versão de Burning Up na Re-Invention Tour (2004), não esquecerá o modo como nela se exprimia uma Madonna seduzida pelas sonoridades mais cruas do rock, tudo devidamente ampliado pela guitarra eléctrica (precedida pela humilde pose acústica da Drowned World Tour, três anos antes). Pois bem, Kevin Figs apanhou-lhe o gosto e propõe uma enérgica reconversão de Celebration, num magnífico one-man-show que exibe um subtítulo adequado: Rock Remix.

No altar da televisão

Montagem a partir de foto da Wikipedia

José Sócrates esteve na televisão, na noite de 22 de Fevereiro (SIC, entrevistado por Miguel Sousa Tavares): este é um retrato breve da sua passagem — texto publicado no Diário de Notícias (23 de Fevereiro), com o título 'A televisão é o nosso altar?'.

No século XXI, como é que alguém vai à televisão mostrar que fala verdade? Provavelmente, vestindo um fato cinzento escuro, uma gravata em tom azulado, olhando nos olhos de quem lhe faz as perguntas. É bom que haja quem formule essas perguntas em vez de usar a televisão como palco de insinuações (ou coisas piores). Mas nada disso invalida a tragédia suspensa que fabricámos: temos a televisão como instância de produção de verdade e... não temos mais nada.
No século XXI, já não procuramos a verdade nos livros, nos filmes ou nas músicas; passámos mesmo a ler os jornais como meros roteiros de hipóteses de verdade (e nem todos merecem que os tratemos assim). Neste mundo culturalmente tão pobre, esperamos que a televisão, por obra e graça de uma magia que as mais nobres igrejas há muito deixaram de reivindicar, seja o nosso altar de verdade. Mesmo que víssemos claramente visto o primeiro-ministro a afogar-se num poço de mentiras, dir-se-ia que desistimos de pensar e olhar à nossa volta.

Quando a pop é... amarela

Os We Have Band são um trio britânico, e anunciam para Abril a edição de um álbum de estreia. O aperitivo, até lá, serve-se na forma de Divisive, single que conta com um teledisco assinado pela dupla Jul& Mat.

Abbey Road: mais um episódio

A novela Abbey Road continua. O mais recente episódio, que aproxima a coisa de um happy end revelou a declaração, por parte das autoridades locais, do imóvel que alberga o mítico estúdio londrino como classificado, entendendo-o assim, e à sua história, como importante contribuição para o património cultural inglês.

Os filmes da 60ª Berlinale (3)

Mais três filmes que passaram pela Berlinale, hoje visitando a secção Forum, com narrativas que apontam olhares à Ásia dos nossos dias. Começamos com Indigène d’Eurasie, novo filme de Sharunas Bartas, uma história que parte de heranças directas do desmoronamento da União Soviética e viaja, entre a Europa e a Ásia, acompanhando Gena, que procura uma vida normal, apesar de uma história pessoal atormentada. O filme traça uma visão sombria do mundo globalizado, em clima de Inverno, cada local parecendo menos hospitaleiro que o anterior…

De Yamada Yoki e Abe Tsutomu, o filme Kyoto Story (com título que imediatamente alude ao clássico Tokyo Monogatari, de Ozu) foi um entre os diversos filmes japoneses a passar por esta 60ª Berlinale. A história acompanha o quotidiano de uma bibliotecária universitária, dividida entre um relacionamento antigo e uma proposta de desafio que chega com um forasteiro. O filme foi rodado numa zona da cidade onde, em tempos, Kurosawa e Mizoguchi também filmaram.

De origem chinesa, Crossing The Mountain, de Yang Rui, leva-nos a uma região no sudeste chinês, próximo da fronteira birmanesa. Mais que contar uma história, revela uma série de fragmentos de narrativas de gentes, a região servindo de espaço comum ao que passa pelo ecrã. O filme surge após três anos de vida quotidiana do realizador nesta região da China.

Três olhares por Berlim (3)

Três olhares em volta do Felix Mendelssohn Bartholdy Park. Perto de Potsdamer Platz, esta extensão de terrenos em tempos desolados e vazios nos dias da cidade dividida alberga hoje alguns dos mais interessantes exemplos das moderna arquitectura berlinense.

Em conversa: Pantha du Prince (2/3)

Continuamos a publicação de uma entrevista com Hendrik Weber (ou seja, Pantha du Prince), que serviu de base ao texto ‘Memória de uma derrocada nos Alpes inspira disco’, publicado no DN a 8 de Fevereiro.

Conta com uma colaboração especial num dos tema de Black Noise. Trata-se de Panda Bear (dos Animal Collective). É um admirador do seu trabalho?
Já conheço o Noah [Lennox, ou seja, Panda Bear] e, na verdade, os Animal Collective há já algum tempo. Um dos seus melhores amigos convidou-me para tocar em Nova Iorque, talvez em 2004, não me lembro bem...

Acabou até por remisturar Peacebone, dos Animal Collective, para um dez polegadas...
Os outros elementos do grupo já me conheciam antes. O Noah contactou-me mais tarde e foi através desses contactos ao longo dos anos que a Domino me contactou para fazer a remistura.

Mas agora levou o próprio Noah Lennox a colaborar no seu disco. A sua música é essencialmente instrumental, mas aqui surge uma voz…
Foi na verdade um pouco difícil para mim. Porque tive de lhe dar, para começar, um esboço... Dei-lhe uma faixa, na qual estava pensar que seria bom ele cantar. Mas acabei a fazer uma faixa nova com a sua voz... Na verdade, tive e voz e acabei por fazer a música para a voz.

Gostou da experiência?
Sim, foi muito agradável. E no futuro vou trabalhar mais com vozes. Foi algo que trouxe um novo nível. E deu-me a impressão de ser a coisa certa a fazer. E a composição foi até mais fácil. Mais natural até, musicalmente falando. Por vezes é difícil trabalhar com vozes porque exigem espaço, por isso não podemos trabalhar tanto o som. Para mim é sempre importante manter o equilíbrio entre o que é o som de Pantha du Prince. Daí que era preciso ter, por um lado o som, por outro a voz.

A música não perde, de facto, essa personalidade. Evolui devagar, como uma reflexão que às tantas se transforma numa canção.
Sim, é verdade. Gosto de combinar uma ideia de viagem sónica com a estrutura de canção por baixo. E é algo sublime conseguir combinar estes dois elementos. A viagem no som, nas harmonias, nas estruturas da canção.

Esta colaboração foi para si um desafio? Ou mais uma oportunidade?
Nem uma coisa nem outra. Acho que foi mesmo algo que estava a acontecer.

Nas suas actuações ao vivo este ano vamos vê-lo mais como DJ ou no registo ‘live’?
Já fazia as duas coisas. Mas no próximo meio ano vou fazer um re-edit das minhas músicas. Fazer sampling ao vivo, remisturas ao vivo das minhas produções. E também tocar novas músicas, faixas que não estão no disco. E tocar jams pelo meio onde possa improvisar. E recuar também a temas do Diamond Daze. Será um pot pourri de produtos Pantha du Prince. Mas no futuro acho que vou inserir mais produções. Normalmente trabalho apenas com excertos das faixas, daí se usar mais temas posso juntar elementos de canções que queira reconstruir, em vez de simplesmente tocar um disco. Tocar discos não é mais o que me interessa. Assim foi nos anos 90 e até no início dos anos zero. Mas estas ideias de misturar e colar e de fazer samples tem de se desenvolver para outro nível... Temos de reconstruir esta história de outra maneira. Falo do formato clássico do DJ, que existe desde os anos 70 com a DJ culture. E penso que está na altura de levar esta ideia a outro nível. O vinil é interessante. Ainda compro vinil... Mas para apresentar música é preciso seguir em frente, usar novas tecnologias. Também gostaria de explorar ainda mais as situações de concerto. Ter o desafio de fazer concertos. Quando se faz um set de DJing, durante umas horas, há tempo para contar várias coisas. Quando se toca ao vivo, como vou fazer nesta nova digressão, estarei mais perto dessa situação de concerto. As coisas podem correr mais, há mais feedback, há uma feel mais analógico...
(continua)

terça-feira, fevereiro 23, 2010

Peter Fonda, on the road

Quem se lembra da estreia de Easy Rider, o filme de 1969 que encerra, simbolicamente, as ilusões de uma década?... Eis uma pergunta que, em boa verdade, só pode fazer sentido para quem tiver mais de 50 anos. Não que tal memória confira qualquer privilégio de leitura face ao filme (ou a qualquer outro). Mas vale a pena referir que a visão de uma utopia fora do tempo e, num certo sentido, contra o tempo não se cumpriu. Percebemos isso através de uma notícia radiosa, porventura enigmática para a nossa imaginação cinéfila — Peter Fonda nasceu a 23 de Fevereiro de 1940, quer dizer, faz hoje 70 anos.

A educação de Carey Mulligan

Ainda que realizado por uma dinamarquesa, Lone Scherfig, o filme Uma Outra Educação é um caso exemplar do realismo britânico. E tanto mais quanto no seu centro está uma personagem de 16 anos — interpretada pela brilhante Carey Mulligan (24 anos) —, portanto de uma faixa etária tantas vezes reduzida a clichés pelas ficções televisivas. O filme consegue mesmo a proeza de evocar os anos 60 através de uma caracterização minuciosa, capaz de contornar também as visões simplistas e mais ou menos "libertárias" da época. A educação da personagem que descobre o amor, o sexo e as ambivalências das relações sociais funciona, assim, como um processo de dupla revelação: para ela, surpreendida pela variedade do mundo para além das paredes seguras da casa familiar; para o espectador, aprendendo a não menosprezar as razões de nenhuma personagem. O realismo é também essa pedagogia de abertura à pluralidade das coisas — e das pessoas.

>>> Declarações de Carey Mulligan poudo depois de ter recebido o prémio BAFTA de melhor actriz.

The Plasticines: as bébés do rock

FOTO blogTO

São francesas e não encaixam exactamente no modelo tradicional da "girls band": The Plasticines cantam uma pop apimentada por um punk muito retro, tudo misturado com agressividade e pose comme il faut. Cantam normalmente em inglês, of course, até porque, como informa a BBC, nasceram de uma fixação por The Libertines (nada é em vão, camarada Doherty)... A sua juventude valeu-lhes o cognome local de "les bébés rockers" e o seu hit do momento responde pelo título exemplar de Bitch [magnífico teledisco, em baixo, de Bridget Palardy]. São genuínas, o que, nos tempos que correm, não é pouco.

PS (nostálgico, ma non troppo): o nome da banda provém de "plasticine porters with looking glass ties", verso de Lucy in the Sky with Diamonds (1967), dos Beatles.