terça-feira, junho 30, 2009

Godard em reportagem

Foi uma sessão preciosa, de redescoberta da obra videográfica de Jean-Luc Godard — na Cinemateca (dia 29, 21h30), foi possível ver três títulos raros: De l'Origine du XXIè Siècle, divagação breve e trágica sobre as marcas da violência no século XX, trabalho encomendado pelo Festival de Cannes para a respectiva abertura no ano 2000; outra encomenda, The Old Place, neste caso do MOMA, em 1999, retratando as imagens e imaginações das suas colecções; enfim, uma absoluta revelação: Réportage Amateur (2006), sobre a preparação da exposição "Collages de France", para o Centro Pompidou.
Por desentendimento entre Godard e a direcção do Pompi-dou, "Collages" nunca se concretizou, dando origem a uma expo-sição "alternativa" — de nome Voyage(s) en utopie, Jean-Luc Godard, 1946-2006 [cartaz em cima] —, embora conservando o espírito do projecto inicial, projecto que pressupunha uma certa lógica "tradicional", com várias salas temáticas, do mito ao real, passando pela câmara, traçando uma espécie de fábula trágica sobre os desígnios, apoteoses e agonias da história do cinema.
Não deixa de ser irónico que Réportage Amateur explicite essa faceta amadora da sua execução, com Godard a explicar a maqueta da exposição a alguém que maneja a câmara e com ele dialoga (por certo, Anne-Marie Miéville). De facto, a ideia de que o cinema é uma máquina de registo pessoal e privado — pour moi, como se escreve na abertura de De l'Origine du XXIè Siècle — é algo presente nos mais diversos momentos da obra godardiana, desde o retrato sociológico da prostituição em Viver a Sua Vida (1962) até à revisitação de Sarajevo, em Nossa Música (2004), passando pelo inventário urbanístico da região parisiense, em Deux ou Trois Choses Que Je Sais d'Elle (1967).
Mais ainda: tendo nós a noção iconográfica (cristã?) de que a apresentação de uma visão pessoal do mundo passa pela imagem do rosto do seu autor, Réportage Amateur é um filme sem rostos (a não ser os do cinema, da fotografia e da pintura), com as mãos de Godard a mostrar a maqueta, utilizando como auxiliar um simples indicador/batuta — o que, entenda-se, não nos impede de visitar as paisagens fascinantes de um pensamento em acção.

>>> De l'Origine du XXIè Siècle e The Old Place estão editados num DVD do catálogo ECM que inclui Je Vous Salue Sarajevo (1993), curta-curtíssima (2 min.) que, em Réportage Amateur, Godard refere como um dos videos previstos para passar, em loop, num dos ecrãs da exposição — estes são os primeiros 7 minutos de De l'Origine du XXIè Siècle.