sexta-feira, novembro 21, 2008

Em conversa: Carlos do Carmo (3/5)

Continuamos a publicação da versão integral de uma entrevista com Carlos do Carmo publicada no DN a 17 de Novembro, data que assinala o lançamento da antologia “Fado Maestro”, que celebra os seus 45 anos de carreira.

A descoberta de uma personalidade sua no fado passou também pelas palavras que cantou e pela abordagem aos instrumentos que escolheu?
Apesar da imensa guerra que ainda hoje os puristas me fazem, e que assumo calmamente, gosto muito de cantar com orquestra! São tipos que estiveram estudar no conservatório, que gostam muito daquilo que tocam e que, de repente, saem do figurino da música que os levou ao instrumento que tocam (que é a clássica) e vêm para uma música exótica, estranha para eles... E vou usar aquela expressão vulgar: primeiro estranha-se depois entranha-se. E hoje tenho um verdadeiro fascínio em tocar com a Sinfonieta [de Lisboa]. Há cinco anos, quando festejei os 40 anos no Coliseu, toquei com a Sinfonieta. E nunca mais deixei de fazer concertos com eles. É uma festa. Os ensaios são uma festa. Boa disposição. Boa onda... Há uma disciplina grande entre eles.

No booklet que acompanha o disco usa a palavra “sacrilégio” quando fala do trabalho com orquestras... Estávamos em finais dos anos 60...
Quando apareço a cantar a Gaivota, com arranjos do [Jorge] Costa Pinto e com a guitarra do Zé Fontes Rocha não houve pessoa nenhuma da minha família que escapasse. Toda gente foi insultada. Era “maulco”, onde já se via cantar fado com uma orquestra? O que fazer? Pedia: deixem-me ouvir música. Gosto de música... Até que se acertou na mouche. Foi o ovo de Colombo. Foi com o Por Morrer uma Andorinha...

Fez mudar algumas opiniões?
Foi como os teatros da Broadway. Umas sessões com gente a sair e mais gente a entrar. A casa de fados parecia uma casa da Broadway. Gente cá fora à espera para entrar... Deixei de discutir então essa coisa da orquestra. Gosto de cantar com orquestra. Agora não fiquem à espera que cante sempre com orquestra. Aliás, tive um prazer imenso em gravar o À Noite. Vesti os calções de criança, fui lá atrás à minha meninice. Ao Armandinho, ao Joaquim Carlos, ao Marceneiro (que nos ensinava a toda a hora)... Às vezes apetece umas coisas e noutras vezes, outras... E isso é que faz uma discografia. A nossa inquietação. O sentir-se com ideias...

Esse gosto de trabalhar com orquestra terá a ver com a velha admiração pelos discos de Frank Sinatra?
Completamente! Aqueles arranjos do Gordon Jenkins, seja para o Nat King Cole seja para o Sinatra. Chamo a isso camas. Vais cantar? Não. Vou-me deitar!... É uma coisa maravilhosa, se for bem tocada. Aí também tenho tido alguma sorte. E estou a falar da nova geração.

Por exemplo...
Chego ao pé do meu amigo Bernardo Sassetti e entrego-lhe dois fados... O Bernardo envolve-se completamente. Não descaracteriza uma vírgula, mas põe lá o seu saber. E com uma coisa que me encanta: está a orquestrar para mim. Está lá o timbre... O Moreira também... Neste país falta isto e falta aquilo. Mas existe o assumir, o arriscar... Até porque trabalhar para gregos e troianos lembra-me o que disse o grande Bill Cosby. Numa entrevista, daquelas em que os sábios falam abertamente da sua profissão (e não daquelas em que escondem os segredos), perguntam-lhe qual era a fórmula para o sucesso. Disse que a do sucesso não tinha. Mas acrescentou que conhecia a do fracasso: que era querer agradar a todos. Quando se faz um disco a pensar que a faixa número três é para este público e aquela vai vender melhor àquele, é a desgraça completa. Estou a falar do tempo em que havia discos... Aquele conceito... O À Noite, por exemplo, é um disco conceptual. Não tem lógica vendido à peça, mas como um todo. Foi pensado como um todo. Tem uma lógica. Mas há outros discos que são à peça... Em que foram acontecendo coisas que, depois, juntei.
(continua)