segunda-feira, setembro 29, 2008

Herman José como sobrevivente

A televisão popular tem sido decomposta a partir do interior: a cultura popular deu lugar ao populismo tecnocrático — os valores de uma economia gerida pelos números abstractos das audiências produzem o alheamento do factor humano e explicam a galopante desumanização mediática em que vivemos. Por cruel ironia, da televisão popular de outros tempos, A Roda da Sorte, com Herman José, representa um escasso espaço de nostalgia — este texto foi publicado no Diário de Notícias (26 de Setembro), com o título 'Herman como sobrevivente'.

Há qualquer coisa de bizarro no reencontro com Herman José em A Roda da Sorte (SIC). Bruscamente, a simplicidade do concurso toca-nos muito para além das suas óbvias fronteiras. Por um lado, não vogamos num desses espaços de apoteótico disparate em que, com risonho cinismo, se fazem perguntas de “cultura geral” que tanto podem envolver o título de um romance de Faulkner ou de um quadro de Picasso como a identidade de uma “estrela” de Floribella ou Morangos com Açúcar. Por outro lado, nada aqui nos empurra para a degradação humana e o metódico achincalhar de partici-pantes (e espectadores), à “boa” maneira do Big Brother e seus derivados.
Basta olhar à nossa volta, para verificarmos que o triunfo da ideologia Big Brother é devastador. O seu efeito normalizador em toda a paisagem televisiva, desde os programas ditos de entretenimento aos espaços informativos, é mesmo, a meu ver, a grande questão cultural do nosso presente português (serenamente ignorada pela esmagadora maioria da classe política). Neste contexto, A Roda da Sorte emerge como hipótese de uma televisão naïf, apostada em não ceder à obscenidade reinante.
Sabemos, claro, dos limites do próprio formato. Não tenhamos dúvidas que, sem o talento de Herman, o concurso cairia numa rotina amorfa. A sua capacidade de manter um discurso a muitas vozes, uma espécie de coro das suas personagens mais emblemáticas (e outras que vai inventando pelo caminho), empresta a A Roda da Sorte um dos prazeres básicos do entertainment televisivo: o de ser um tempo sempre disponível para a auto-ironia.
Lembro-me de, há mais de vinte anos, ser acusado, inclusive por vozes vindas do interior da classe jornalística, do peca-do “intelectual” de defender a excelência criativa do “Tony Silva” e dos primeiros sketches de Herman. Agora, face à desolação televisiva, não posso deixar de reconhecer que o negrume da reality TV tomou o poder. E a tragédia não é que o discurso crítico, seja de quem for, continue a servir de bode expiatório (nada mudou, hélas!). A tragédia é que deixámos de poder ver Herman como um modelo de televisão popular: passámos a admirá-lo como um sobrevivente do próprio gosto de fazer essa televisão.
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O trabalho de Herman José sobre o nosso quotidiano — e também a sua espantosa colecção de vozes e personagens — encontra, actualmente, uma magnífica expressão na rubrica de rádio O Tal País (Antena 1: 08h55 e 17h55, de segunda a sexta-feira). Algumas das edições estão registadas em imagem — eis um exemplo, emitido a 1 de Agosto.