segunda-feira, julho 28, 2008

Para acabar com o cinema português

O produtor cinematográfico Alexandre Valente está a trabalhar num novo filme, intitulado Second Life. As suas declarações sobre o projecto justificam a interrogação: para onde vai o cinema português? A pergunta, recoberta por muita indiferença política e mediática, é mais pertinente do que nunca — este texto foi publicado no Diário de Notícias (27 Julho).

Na sexta-feira, neste mesmo jornal (revista “Notícias TV”), foi publicada uma entrevista com o produtor de cinema Alexandre Valente. A pretexto do seu projecto Second Life, o entrevistado tece algumas considerações sobre o estado do cinema português que merecem ser discutidas.
Alexandre Valente considera que “durante uns 15 ou 20 anos, o cinema português foi feito não para os espectadores, mas para os amigos dos realizadores.” Será uma autocrítica, uma vez que podemos encontrar o seu nome, por exemplo, na ficha de O Quinto Império (2004), de Manoel de Oliveira [em cima: foto do filme], na qualidade de director de produção. E é um facto que O Quinto Império (8218 espectadores) não foi um sucesso. Por mim, direi que se trata de um dos objectos maiores de toda a produção artística portuguesa do último meio século. Mas isso é um pormenor. Alexandre Valente tem outra visão dos filmes. Aliás, quando lhe é perguntado “o que é que o seu cinema tem de diferente”, responde simplesmente: “O meu dinheiro.”
É em nome dessa visão que avança com exemplos de filmes que ilustram o mal do cinema português: O Delfim (2002) e 98 Octanas (2006), ambos de Fernando Lopes, serão dois desses nefastos objectos sobre os quais se escreveu que “eram dos melhores filmes”, mas que, depois, “as pessoas foram ver e não perceberam”.
Curiosa condensação informativa. Na verdade, O Delfim ultrapassou os 50 mil espectadores, no contexto português um número inequivocamente positivo (há muitos filmes americanos que fazem muitíssimo menos, mas o preconceito dominante faz crer que se pode analisar a vida económica do cinema português rasurando tudo o que está à volta). Quanto a 98 Octanas, é verdade que se ficou pelo valor muito fraco de 6246 espectadores. Mas Alexandre Valente engana-se quando tenta estabelecer uma conexão automática entre o que se escreve sobre os filmes e a sua performance comercial: basta lembrar que, em dois jornais de referência (Diário de Notícias e Público), 98 Octanas foi objecto de leituras claramente negativas, não um filme protegido por amigos (nem tinha que ser).
Há nas palavras de Alexandre Valente uma curiosa disfunção artística: “O cinema que faço não é necessariamente o cinema de que gosto.” Mas os particularismos psicológicos são irrelevantes. Este é o discurso que insiste em dividir o cinema português em profis-sionais “correctos” e profissionais “malignos”, nestes se incluindo pessoas como Fernando Lopes, a meu ver um dos autores essenciais de toda a história do cinema português (sou amigo dele, confesso, e argumentista de 98 Octanas). Em contraponto, para Second Life, Alexandre Valente anuncia nudez feminina e outras proezas cinéfilas: “Vamos ter table dances, personagens com tendências homossexuais, etc.”
Permito-me, por isso, reiterar o meu empenho em defender a diversidade do cinema português. E em defender um lugar, no interior dessa diversidade, para Alexandre Valente. Resta saber que sentido faz denegrir, por princípio, todos os que preferem filmar outras coisas (nuas ou vestidas). Afinal de contas, Alexandre Valente tem direito à sua voz e não pode ser responsabilizado pelo facto de nem Governo nem oposição terem qualquer projecto para o cinema português. Política, precisa-se.