domingo, julho 27, 2008

O homem na cidade

Assinala-se hoje o centenário de Joseph Mitchell (1908-1996), jornalista norte-americano que se distinguiu essencialmente pelo retrato de figuras anónimas, perdidas entre a multidão de uma grande cidade.

Autor do assombroso O Segredo de Joe Gould (editado entre nós pela D. Quixote, com prefácio assinado por António Lobo Antunes), e durante longos anos presença regular nas páginas da New Yorker, Joseph Mitchell trabalhou, em início de carreira, ou seja nos anos 30, como jornalista para diversos jornais nova-iorquinos. Natural de Iona (Carolina do Norte), tinha chegado a Manhattan em 1929 com 21 anos, falhado um futuro universitário pela absoluta inaptidão com a matemática. Salvo os meses em que atravessou o mar, em viagem até à cidade Leninegrado (hoje São Petesburgo, na Rússia), a bordo de um navio, regressando logo depois, viveu e descobriu Nova Iorque em busca de histórias e das suas personagens.
Em tempo de colapso económico, encontrou primeiros trabalhos em pequenos e grandes jornais nos quais fez, como tantos outros principiantes, as rondas da noite entre esquadras de polícia, tribunais, quartéis de bombeiros, hospitais, enviando para a redacção pedaços de notícias cuja arte final escapava aos seus dedos. Começou no The World, depois fez notícias locais para o Herald Tribune e mais tarde trabalhou como colunista no hoje extinto The World Telegram antes de, em 1938, ser convidado para integrar a equipa da New Yorker. Datam desta etapa de descoberta e aprendizagem os textos reunidos em Sou Todo Ouvidos (o primeiro livro de crónicas que a Âmbar publicou entre nós em finais de 2006), não só um espantoso exercício do mais cativante e sóbrio jornalismo como, e sobretudo, um retrato vivo, com cor e cheiro, das gentes do lado errado da Nova Iorque dos anos 30. Já em 2007 a mesma editora lançou em Portugal O Fundo da Baía, uma segunda colecção de crónicas, datando estas de finais dos anos 40 e da década de 50.

Para a (re)descoberta de Joseph Mitchell, nada como começar pelas pequenas grandes histórias e figuras que nos revela em Sou Todo Ouvidos. Apesar de, no final do livro, se registarem encontros com George Bernard Shaw, Gene Krupa e algumas mais figuras públicas - a quem Mitchell chamava “moedores de ouvidos” – Sou Todo Ouvidos vive essencialmente de histórias e retratos de anónimos com “uma intimidade velha de anos com a pobreza”. Strippers em espectáculos de burlesque, bêbedos em noites de copos a fio em bares esquecidos, pregadores (e seus negócios pouco claros), jogadores de baseball frustrados, uma condessa pugilista, fumadores de marijuana em noitadas de rent party, praticantes de vudu no coração da grande cidade, sem abrigo em noites de sono solto em asilos, desempregados que passam as noites de Verão nas praias de Conney Island, condenados por assassínio de um colega de copos a caminho da cadeira eléctrica, um anarquista popular entre os desafortunados... “As únicas pessoas que não estou interessado em ouvir são as mulheres da alta-roda, os grandes industriais, os autores reputados, os ministros, os exploradores, os actores de cinema (...) assim como qualquer actriz com menos de trinta e cinco anos”, explica o autor num prefácio que define princípios, onde sublinha ainda que “não pode haver mais praga para um jornal que um jornalista que se põe a tentar escrever literatura”. A escrita de Joseph Mitchell é, de facto, clara, directa, intensa e realista, olhos e ouvidos feitos palavra. E Sou Todo Ouvidos, um documento de figuras e lugares de uma Nova Iorque verdadeira, que descobrimos com a mesma curiosidade de um jovem jornalista, em busca de histórias, há 70 anos.
PS. Versão editada de um texto publicado na revista 6ª, em Janeiro de 2007.