quarta-feira, abril 23, 2008

Sentados no "tatami"

O derradeiro filme do mestre japonês Yasujiro Ozu chegou ao mercado português do DVD: O Gosto do Saké (1962) foi editado em edição conjunta com outra das suas preciosidades, O Fim do Outono (1960) — este texto, sobre O Gosto do Saké [foto], foi publicado no Diário de Notícias (20 Abril) com o título 'Segredos do Japão de Yasujiro Ozu'.

É um facto indesmentível que o mercado do DVD já se libertou da lógica mercantilista, induzida por muitas formas preguiçosas de marketing, segundo a qual a sua principal “utilidade” seria a reposição dos títulos estreados seis meses antes. De facto, concebê-lo assim era, além do mais, uma visão simplista e preconceituosa que menosprezava o imenso leque de alternativas, em particular na recuperação dos filmes mais antigos, com ou sem estatuto de clássicos.
Dito isto, importa reconhecer também que, em termos globais, o mercado (incluindo os locais de venda) continua a ser eminen-temente conservador. Duas razões principais contribuem para isso: desde logo, as privilégios promocionais que são concedidos a filmes que ainda há pouco tempo estrearam nas salas; depois, o escasso trabalho (em particular dos locais de venda) para valorizar as muitas pérolas que vão sendo editadas. Um exemplo? O de Yasujiro Ozu (1903-1963), mestre lendário da produção japonesa e, em boa verdade, um dos autores maiores de toda a história do cinema. Vale a pena recordar que, no último inquérito à crítica internacional organizado pela revista britânica Sight & Sound para eleger os “melhores de sempre”, o nome de Ozu integra a lista dos dez melhores cineastas, em décimo lugar (ex-aequo com Francis Ford Coppola); no Top 10 dos filmes, liderado por O Mundo a Seus Pés (1941), de Orson Welles, Ozu está representado por Viagem a Tóquio (1953), em quinto lugar.
Pois bem, já há vários anos que Ozu não é um nome ausente do DVD em Portugal. Viagem a Tóquio, precisamente, foi editado há poucos meses. Entretanto, chegou ao mercado O Gosto do Saké (1962), derradeiro trabalho de uma filmografia de mais de três décadas (iniciada em 1927, ainda no período mudo) que possui um incontornável valor simbólico: nele se condensa o desencanto do cineasta face ao Japão do pós-guerra e, em particular, à metódica desagregação das tradicionais relações familiares e sociais.
Ozu foi o inventor genial de um universo comandado por uma obsessiva austeridade narrativa. Os seus modos de encenar têm tanto de rigor formal como de peculiar entendimento dos espaços do quotidiano (são célebres as suas imagens das personagens enquadradas a partir do olhar que assumem quando se instalam sobre os típicos tapetes, “tatamis”, das casas japonesas). Apesar disso, ou justamente por causa disso, importa acrescentar que ele nunca foi um “formalista”, já que, em última instância, é a pluralidade do factor humano que comanda o seu cinema.
O Gosto do Saké possui um valor exemplar, quanto mais não seja porque traduz a crescente depuração das linguagens de Ozu. A história que nele se conta, centrada num veterano da guerra que tenta garantir um bom casamento para a sua filha, acaba por ser um espelho delicado, não isento de crueldade, de um tempo de reconversão acelerada da sociedade nipónica. Por um lado, todas as personagens de Ozu transportam um pudor tecido de muitos segredos; por outro lado, o seu cinema tende a criar uma transparência rara onde, por assim dizer, podemos compreender esses segredos sem destruir o pudor. Ironicamente ou não, O Gosto do Saké é, neste momento, em Portugal, um dos grandes acontecimentos cinematográficos.