segunda-feira, fevereiro 25, 2008

Anti-Coen

Se se tratava de escolher entre os irmãos Coen e Paul Thomas Anderson, os prémios da Academia de Artes e Ciências Cinemato-gráficas de Hollywood arrastam necessariamente um importante efeito simbólico: o formalismo dos primeiros sobrepôs-se à dimensão épica do segundo.
Estou, então, "contra" os Oscars? Bem pelo contrário: foi um espectáculo magnífico, espelho ambivalente do presente — cine-matográfico, tecnológico e político — e genuína celebração de Hollywood com todas as suas diferenças e contradições. Além do mais, mesmo declarando a minha paixão por Haverá Sangue, de Paul Thomas Anderson, não tenho a mínima pretensão de "julgar" a escolha de Este País Não É Para Velhos, de Joel e Ethan Coen, como melhor filme de 2007 (são sempre patéticos os discursos que tentam "acusar" a Academia por não coincidir com as "minhas" preferências).
Se algum objecto é visado nestas linhas é, tão só no plano estético, o edifício formal que, pacientemente, os Coen vão gerindo, em boa verdade desde a sua primeira longa-metragem, Blood Simple (1984), porventura, na minha perspectiva, o melhor dos seus filmes. Dito de outro modo: o seu cinema decorre de três princípios básicos:
— uma reconversão abstracta dos códigos de determinados géneros (do filme negro à comédia, passando pelo western);
— a redução temática desses géneros a um dispositivo automático de insistente misantropia;
— a prática de um sistema de auto-ironia que, em boa verdade, se transformou na componente vital de todas as cenas dos seus filmes.
Que me leva, então, a preferir a dramaturgia de Paul Thomas Anderson e, em particular, as convulsões emo-cionais de Haverá Sangue [na imagem, em cima: Daniel Day-Lewis]? Acima de tudo, e esquematizando, a carnalidade da sua relação com tudo aquilo que filma. Tudo aquilo que os Coen encenam como proeza formal(ista), incluindo o lugar da violência no imaginário icono-gráfico da América, ressurge em Paul Thomas Anderson como inextricável teia de corpos, geografias e ideologias.
No limite, a história de Haverá Sangue confunde-se com a saga mitológica da própria terra — cada personagem é uma peça irredutível de uma comunidade, em boa verdade uma nação, nunca aquietada na sua atracção contraditória pelo poder económico (o sangue da terra) e o impulso religioso (o sangue de Cristo). Nos Coen, o sangue é um adereço de luxúria formal: desfrutamo-lo como uma espécie de complemento de um "verismo" que nasce do esvaziamento da história colectiva. No filme de Paul Thomas Anderson, (re)formula-se a hipótese de um realismo colado à materialidade perturbante dos corpos.
A meu ver, o cinema dos Coen é um sucedâneo menor, mas de superfícies inegavelmente sedutoras, do trabalho que, nos anos 60/70, foi feito por autores como o italiano Sergio Leone. Ou seja: esvaziar a história e promover os sabores da retórica. Paul Thomas Anderson remete-nos para o património radical dos pioneiros, inclusivé para o realismo alucinado (ou alucinatório) de Eric Von Stroheim e do emblemático Greed [foto em baixo], datado de 1924. Que ambos se tenham cruzado de forma tão tensa e intensa na cerimónia dos Oscars, eis, em última instância, uma magnífica demonstração da vitalidade de Hollywood.