quarta-feira, fevereiro 28, 2007

Super-cão

É verdade, confessamos a nossa fraqueza: o Sound+Vision tem um preconceito favorável face a esse género tão menosprezado que é o "filme-com-cão". Embora sem certezas (e não excluindo, hélas!, a possibilidade de uma enorme desilusão), vimos, por isso, dar notícia do próximo lançamento (3 Agosto, nos EUA) de Underdog, adaptação cinematográfica de uma série televisiva de desenhos animados, dos anos 60, centrada na personagem de um super-herói de quatro patas. Não sabemos se Underdog conseguirá redimir as banalidades que, com muita frequência, se fazem em nome da comédia e da infância — em todo o caso, o planeta está protegido.

Corpo e alma

Gostamos de Diane Arbus (1923-1971). Falámos dela, em Novembro de 2005, a propósito de uma exposição, em Londres, no Victoria & Albert, desde logo chamando a atenção para o filme "biográfico" que sobre ela se anunciava, com Nicole Kidman sob a direcção de Steven Shainberg. Em Setembro de 2006, recordámos as suas espantosas fotografias, avançando com as primeiras notícias sobre a estreia do filme nos EUA. Ainda no mesmo mês, comentámos o livro de Patricia Bosworth em que Shainberg se baseou, voltando a remeter para o filme. Finalmente, em Novembro de 2006, dávamos conta de mais alguns ecos em torno do filme, perguntando se os distribuidores portugueses se iam dar ao luxo de ignorar um filme, à partida, tão motivador e, para mais, com a actriz mais popular do mundo?
Pois bem, a resposta a esta pergunta é, felizmente, negativa. Com chancela da Lusomundo, Fur - Um Retrato Imaginário de Diane Arbus tem estreia portuguesa marcada para 15 de Março. E já podemos acrescentar que se confirmam as melhores expectativas: estamos perante um encantatório retrato de um processo criativo, por dentro, com uma Nicole Kidman prodigiosa, tendo a seu lado o genial Robert Downey Jr., num papel com tanto de ingrato (por razões de figuração do corpo) quanto de subtilmente emocional. Fur é um exemplo esclarecedor de como, se há um realismo do corpo, pode haver também um naturalismo da alma.

terça-feira, fevereiro 27, 2007

Doze...

Twelve é nome de álbum. E, nele, Patti Smith canta Jimi Hendrix, Bob Dylan, Nirvana, Neil Young, Stevie Wonder, Tears For Fears... Para ouvir a partir de 19 de Abril.

Japanese girl

Chama-se Brillia Mare Ariake e é um novíssimo complexo de apartamentos, a inaugurar, em Maio, em Tóquio. Quem andar à procura de um recatado repouso nipónico, não exactamente de preço mediano, é altura de escolher. Seja como for, e para ajudar a uma opção consciente, a Material Girl decidiu fazer este spot televisivo, tendo chamado para a realização um velho cúmplice: Steven Kline. O texto diz: Beyond race / Beyond gender / Beyond religion / Beyond culture / Beyond tomorrow / Just perfect / Brillia Mare Ariake. Podia ser uma canção de Confessions on a Dance Floor, mas não é. Em todo o caso, atenção ao desenlace: é favor pronunciar "Brillia Mare Ariake" com o devido sotaque japonês.

Discos da semana, 26 de Fevereiro

Patrick Wolf “The Magic Position”
Para Patrick Wolf a pop é hoje em dia a mais libertadora das músicas. E nesse ponto não há dúvidas ao escutar o seu terceiro álbum. The Magic Position é um álbum pop como há muito não se ouvia. Pop com três letras. Grandes. Pop luminosa, mas tão garrida quanto frágil, linguagem de ensaio aqui posta ao serviço do retrato de um ano numa vida, confissões pessoais feitas canções naquele que não só é o melhor disco do jovem músico inglês até à data como representa mais um dos pedaços de música que 2007 registará entre o seu melhor. Pop, sem dúvida. Mas não reduzamos The Magic Position a um rótulo que ultimamente tem andado por mãos erradas. Mais que no inquieto Lycanthropy e no sublime Wind In The Wires, onde, respectivamente o músico revelava a sua infinita versatilidade nas fontes e, mais tarde, uma busca de requinte e rigor nas formas, o novo disco mostra um Patrick Wolf tão capaz da experiência traçada como quem navega à vista desarmada, como da arte da busca da perfeição. Alternando a efusiva vitalidade melodista de um Accident & Emergency (single de avanço de ostensiva festividade pop, revelada para espanto geral, ainda em 2006), Get Lost ou do próprio tema-título com episódios de implosão para piano, cordas e palavras (entre os quais o arrepiante Magpie, dueto com Marianne Faithfull ou o não menos belo Augustine), Patrick Wolf toma The Magic Position como purga pop para um ano de eventos, certo sendo que da terapia parece ter nascido um homem mais feliz que o que havíamos conhecido nos dois primeiros discos. Felicidade que não abafou o sentido de perigo que assume ao insistir numa cuidada construção de cenários e personagens, vidas ficcionadas que usa para contar os seus dias. Certo parecendo ser que, mesmo ciente de estar para já fechado num carrossel de cores vivas, um espírito mais tranquilo habita estas canções com vontade de se mostrar tão perfeitas quanto possível. E nelas encontramos nós um raro pedaço da melhor arte pop dos dias que correm.

Old Jerusalem “The Temple Bell”
Depois de ter assinado dois dos mais elogiados álbuns da recente música feita em Portugal, Francisco Silva chega ao terceiro disco com uma linguagem já sólida e demarcada. Linguagem que, com April e Twice The Humbling Sun dele fez, talvez o mais interessante de uma nova geração de cantautores. Não era por acaso, portanto, que o novo disco era um dos mais esperados neste início de ano. Porém, apesar da segurança lírica (em mais credíveis e pessoais histórias feitas de discreta melancolia) e de um evidente ensejo de mais elaborada arte final, o conjunto das canções aqui apresentadas está longe de corresponder às expectativas. Depois de um arranque convidativo, o álbum instala em nós uma plácida, mas monótona letargia, sem janelas de brilho ou sombra, que aos poucos deixam frustrada a vontade de aqui querer encontrar o desejo esperado.

U-Clic “Console Pupils”
Há dois anos, esta era uma das mais entusiasmantes ideias na música portuguesa. Na verdade, a música (e a sua projecção como corpo em palco) nada mudou e o seu valor está aqui registado. Mas o que era novo e espantosamente oportuno há quase dois anos, é agora uma espécie de eco distante que, entretanto sabe a “podia ter sido, mas não foi”... Há aqui belíssimas ideias de construção de canções de viço punk sob ferramentas electrónicas, com Unfashionautic Superstars, Ici In Disneyland ou Like a merecer inscrição na lista das canções mais entusiasmantes do ano ‘tuga’ até ao momento. Contudo, o atraso inenarrável com que o disco chega, finalmente às lojas transformará o que era uma das mais entusiasmantes promessas de 2005 num foguete molhado em 2007. A música que antes estava em sintonia com certas manifestações de além fronteiras já não tem o mesmo sabor à fúria do novo com que a descobrimos. E, quem sabe se a criação dos próprios U-Clic já circula noutros destinos... Ou seja, Console Pupils não deixa de ser um bom disco. Mas a sua capacidade em marcar a agenda do presente perde por chegar, tarde demais, a um calendário que há muito o esperava.

Kaiser Chiefs “Yours Truly, Agry Mob”
O álbum de estreia dos Kaiser Cheifs foi das erupções pop mais “bife” que a actual geração britânica nos deu, dele nascendo uma mão cheia de cativantes hinos que, em palco souberam fazer a festa, quase lembrando a atmosfera festiva os dias mais luminosos dos Blur em meados de 90 (afinal havia ali genéticas partilhadas). Ao segundo álbum, contudo (e seguindo triste destino que recentemente abraçou as segundas gravações dos compatriotas Bloc Party ou dos norte-americanos The Killers), uma inesperada banalização das formas e conteúdos ameaça transformar uma banda c0m sangue vivo num colosso para delírio em estádio. Sem verdadeira chama criativa, apostando antes em colagens de modelos de resposta laddish fácil, num processo de desmoronamento de uma ideia antes promissora como, nos anos 90 vimos acontecer com os James, o disco é medíocre prova de que algo de errado corre mesmo numa geração que parece incapaz de vencer o desafio do primeiro episódio.

Também esta semana:
Pop Levi, Bowie (mais seis reedições), Gus Gus, Tarnation, High Llamas, Frank Black, Stereo Total, Gus Gus, Damned (reedição), Jessee Malin, Cast (BBC Sessions)

Brevemente:
5 de Março: Arcade Fire, Mika, Bryan Ferry, Air, Tracey Thorn, Ry Cooder, Stooges, RJD2, Seeds (best of), Mint Royal, Depeche Mode (reedições), !!!
12 de Março: LCD Soundsystem, Magazine (reedições), Blind Zero
19 de Março: Rakes, David Bowie (reedições), Kronos Quartet


Março: The Knife (DVD), Gary Numan (BBC Sessions), Kieran Hebden + Steve Reid, Da Weasel, Arctic Monkeys, LCD Soundsystem, Norton, Bananarama, OneTwo
Abril: Patti Smith, Bright Eyes, Spiritualized, Modest Mouse, Brett Anderson, The Bees, Nine Inch Nails
Maio: Rufus Wainwright, OMD (reedição), Tori Amos

Estas datas podem ser alteradas a todo o momento

Santaolalla e os outros (*)

Babel, banda sonora de Gus-tavo Santaolalla >>> A junção da música de um filme” e “inspirada por” nem sempre tem dado resultados muito interessantes. Não é o caso desta edição da banda sonora de Babel, de Alejandro González Iñárritu, sem dúvida um dos acontecimentos marcantes do ano cine-matográfico de 2006. Desde logo, porque os temas instrumentais do argentino Gustavo Santaolalla (autor das músicas de Diários de Che Guevara e O Segredo de Brokeback Mountain) revelam um savoir faire de grande riqueza melódica e dramática. Depois, porque a diversidade de convidados e inspirações (Chavela Vargas, David Sylvian, Ryuichi Sakamoto, etc.) é de primeira água. Resultado: um álbum (duplo) verdadeiramente babélico e estimulante.
* Publicado na revista "6ª" (Diário de Notícias), a 16 Fev. 2006

segunda-feira, fevereiro 26, 2007

Conversa de elevador

Ao que parece, até nos elevadores havia quem lhe perguntasse quando é que ganharia um Oscar. Notícia do dia: o problema está resolvido. Entretanto, espera-se o próximo filme (que vai ser um documentário sobre os Rolling Stones — pelo que consta, sem música de elevador).

domingo, fevereiro 25, 2007

Scott

Entre a oferta documentarística que ocupou parte significativa da 57ª edição da Berlinale (grande parte concentrada na secção Panorama, decididamente mais entusiasmante que a competição oficial) destacou-se o espantoso, e muito esperado, olhar sobre a vida e obra de Scott Walker. Realizado por Steven Kijak (responsável por episódios da série Queer Eye For The Straight Guy), e sob produção executiva de David Bowie (um velho admirador do músico), Scott Walker: 30 Century Man é inteligente fuga à lógica de automatismo televisivo que tem caracterizado muitos dos recentes documentários sobre músicos e música.
Tendo por pièce de resistence uma série de imagens colhidas durante a gravação do álbum The Drift (e nunca antes Scott Walker havia permitido a presença de uma câmara em estúdio) e uma entrevista recente que serve de medula a toda uma série de histórias que se vão contando, o filme não só garante o interesse dos muitos que o admiram como está feito para arrebatar pela surpresa quem se dispuser à descoberta. De resto, o realizador teve o cuidado de ordenar cronologicamente as memórias que ilustram a história, permitindo aos que nela se aventurem pela primeira vez o prazer, solidamente explicado, da exposição de uma história de vida que musicalmente nasce em registo teenager descartável para acabar, 40 anos depois, comparada à intensidade artística de um Beckett ou Francis Bacon. A descoberta da voz e personalidade (Brel fundamental neste processo) e os seus feitos são ainda alvo de reflexão por alguns dos seus mais marcantes herdeiros, de Bowie a Jarvis Cocker, de Damon Albarn a Alison Goldfrapp, de Brian Eno a Marc Almond. Ideias de cinema moram pelo filme fora, a história conduzindo-nos, sem às tantas podermos podermos fugir, do mundo de inquietude e demónios interiores que caracterizam The Drift, disco que acaba por ser o destino de hora e meia de viagem de (re)descoberta.
Antes do visionamento, em Berlim, o realizador pediu para que levantasse o braço quem nunca ouvira falar de Scott Walker. Muitos braços... No fim, disse, estariam todos conquistados. Tinha razão. Para abrir apetites, segue-se o trailer...

PS. Versão longa de texto publicado na revista '6ª', do Diário de Noticias


sábado, fevereiro 24, 2007

Como a toupeira

Há qualquer coisa de obsceno nos ecos mediáticos — e, sobretudo, televisivos — suscitados pela passagem dos 20 anos sobre a morte de José Afonso (2 Agosto 1929 - 23 Fevereiro 1987). Não se trata de recusar o seu lugar na história da música popular portuguesa do século XX (de uma importância, a meu ver, apenas igualada por figuras como Amália Rodrigues). Muito menos se pretende pôr em causa a sinceridade emocional e a riqueza histórica de muitas evocações que, nos últimos dias, têm surgido nos mais diversos órgãos de informação. Permito-me, aliás, sublinhar o trabalho de inventariação e divulgação da(s) memória(s) desenvolvido pela Associação José Afonso, com prolongamentos muito interessantes no respectivo blog.
O que está em causa é de outra natureza. E decorre do próprio labor de apagamento e normalização que os valores dominantes no espaço mediático têm imposto ao país. Assim, José Afonso (como muitas outras referências da nossa história cultural) está longe de ser um nome com uma presença regular no nosso quotidiano. Bem pelo contrário: a cultura dominante vive de uma banalização de todas as formas de consumo que, seja qual for a visibilidade que ciclicamente confere a determinadas obras, tende a favorecer atitudes de alheamento, indiferença e até desprezo em relação a tudo que envolva algum valor patrimonial. Daí a obscenidade destes dias: as televisões que programam horas infinitas de telenovelas (não exactamente com bandas sonoras de José Afonso...) e celebram a demagogia imediatista dos reality shows, são essas mesmas televisões que põem os seus pivots, com rostos muito graves e palavras muito oficiais, a exaltar as virtudes de José Afonso e da sua música... Algo soa a falso.
A situação agrava-se através da própria "politização" que, declaradamente ou não, tende a envolver a herança de José Afonso. Entendamo-nos: não há cantor mais político que José Afonso. Mas é um erro fulcral — isto é, cultural — pretender transformá-lo em peça incauta dos jogos florais da classe política, por exemplo com a esquerda a querer fazer dele uma bandeira sua, ou a direita a tentar reduzi-lo a coisa abstracta e liofilizada.
O drama de tudo isto não é, repare-se, que José Afonso possa suscitar visões controversas ou até grandes clivagens ideológicas ou culturais. O drama enraiza-se num ambiente — cultural, mediático, televisivo — que congela as nossas memórias mais genuínas para, de vez em quando, apenas por obra e graça do calendário, as tirar da cartola para promover grandes festas e pequeníssimas ideias. Não é fácil ser como a toupeira... que esburaca.

"Confessions" (5/5): o espectáculo

Não faz muito sentido dizer que The Confessions Tour seja um DVD que regista algo que aconteceu num palco. Desde logo, porque a própria noção tradicional de palco está posta em causa, mas também porque não se trata apenas de "registar" ou "reproduzir" — das coreografias às proezas pessoais, tudo o que aqui acontece resulta de um conceito global de espectáculo, tão minucioso e obsessivo que se reflecte, afinal, no mais pequeno fragmento que dele possamos autonomizar. Exemplo? Por vezes, a realização de Jonas Akerlund recupera o velho método de sobreposição de imagens (lembremos tal método na arte narrativa de um cineasta clássico como George Stevens), não para "passar" de uma situação a outra, antes para criar momentos de pura suspensão poética. Vemos, assim, o rosto de Madonna como uma paisagem de abertura para as peripécias do espectáculo e também de síntese dos seus valores. É uma serena exaltação da beleza das formas e, além do mais, uma boa metáfora.

sexta-feira, fevereiro 23, 2007

Velhice versus juventude

O velho é ele: Peter O'Toole, numa prodigiosa composição que (à oitava vez!) talvez lhe traga o Oscar de melhor actor. Ela é a jovem sobrinha de um amigo, alguém que lhe vem baralhar as rotinas, relançando-o, inesperadamente, numa convulsão em que se misturam a paixão da vida e a nitidez próxima da morte — também uma notável interpretação de Jodie Whittaker (25 anos, estreante em cinema). Em todo o caso, ainda mais velho é o quadro com que eles se confrontam: A Vénus do Espelho, pintado por Diego Velázquez entre 1644 e 1648, exposto na National Gallery, em Londres — dir-se-ia que a nudez da mulher da pintura possui a ambígua energia de um motivo revelador, puro e radical.
Tudo isto está num belo filme inglês — de adequado título Vénus, com direcção de Roger Michell —, uma comédia amarga sobre os prós e contras da velhice (e da juventude), num registo que nos remete para a nobre tradição realista britânica e, em particular, para os primeiros filmes assinados por Stephen Frears. E como nestas coisas as coincidências raras vezes são anódinas, convém lembrar que o argumentista de alguns desses filmes, nomeadamente A Minha Bela Lavandaria (1985) é o mesmo de Vénus: o escritor e dramaturgo Hanif Kureishi.

London Calling 2007 (Parte 5)

Terminada há poucas semanas a exposição de retratos de David Hockney na National Portrait Gallery, a exposição mais "vistosa" que Londres agora oferece apresenta-nos um percurso no tempo através da obra da dupla britânica Gilbert & George. Ocupando todo o nível 4 da Tate Modern, Gilbert & George: Major Exhibition começa por nos recordar as primeiras obras, para carvão e papel, que a dupla criava em inícios de 70, de comum com o trabalho de manipulação posterior, apenas havendo então a dimensão enorme das peças e, já, a auto-representação, obsessiva, dos dois criadores.
Num percurso de 18 salas, às quais se junta o hall do nível 4, no qual se apresentam obras contemporâneas (as mais recentes já de 2006, dominadas pelas temáticas do medo de ataques sob o qual vive hoje a cidade de Londres), acompanhamos a evolução gradual de uma linguagem visual muito característica, que tanto se ocupa da observação (e transformação) do corpo como procura integrar mecanismos do discurso publicitário num subtexto que veicula, pela arte, uma filosofia de agitação e provocação. A maior parte das imagens que servem estas peças de dimensões consideráveis é captada nas imediações do local onde a dupla vive, no East End londrino. De certa maneira, o acompanhar da descoberta desta obra, de 1970 à actualidade, acaba por promover retratos possíveis de certas manifestações de subculturas na periferia das linguagens artísticas e sociais dominantes, presente estando sempre obsessões evidentes com o corpo, a sexualidade e uma noção de pose (que parece herdada da tradição vaudevillesca britânica, com natural expressão na cultura pop dos últimos 40 anos). Estátuas vivas, captadas, manipuladas e fragmentadas, para ver até Maio na Tate Modern.

Gilels: um pianista a (re)descobrir (*)

Sobre dois discos de Emil Gilels: 'Early recordings' e 'The Mozart recordings' (Deutsche Grammophon, 2006) >>> Na árvore genealógica dos pianistas do leste europeu, o russo Emil Grygorievich Gilels (1916-1985) ocupa um lugar central. Por um lado, como é óbvio, por causa desse paradoxo de crueza e elegância que caracteriza os seus registos, sempre marcados por uma intransigente depuração técnica; por outro lado, porque, depois das primeiras três décadas da Revolução de Outubro (a partir de 1947), Gilels foi um dos primeiros artistas soviéticos a ser autorizado a deslocar-se ao estrangeiro. Com estes dois álbuns (ambos duplos), a Deutsche Grammophon reabre as portas de um fascinante universo criativo, e tanto mais quanto o leque de obras é muito variado e suficientemente contrastado. As primeiras gravações (a partir de 1935) incluem, entre outros, Schumann, Prokofiev e Chopin, não faltando uma sonata de Beethoven (op. 2, nº 3), afinal um dos nomes mais emblemáticos na carreira de Gilels. O álbum “mozartiano” é uma maravilha de muitas subtilezas, culminando no concerto para dois pianos e orquestra K. 365, gravado em 1973, tocado com a filha Elena Gilels e a Filarmónica de Viena, sob a direcção de Karl Böhm.

* Texto publicado na revista Op (nº 21, Inverno 2006)

quinta-feira, fevereiro 22, 2007

London Calling 2007 (Parte 4)

A viver os ultimos dias de representações no Duke Of Yorke Theatre, a espantosa peça de Tom Stoppard Rock'N'Roll garantiu a Londres uma das suas mais elogiadas e vistas manifestações de bom teatro nos últimos meses. A peça mostra-se com novo elenco, no qual se destacam agora as presenças de Dominic West (Jan), Emma Fielding (Eleanor) e David Calder (Max).
História que nos transporta de 1968 a 1990, ou seja, entre a ocupação de Praga por tropas soviéticas e o momento em que estas abandonam a cidade, muro de Berlim caído algum tempo antes e bloco comunista europeu em desmoronamento total, Rock'N'Roll usa como metáforas e ganchos narrativos algumas canções que a história da música popular viveu nesses mesmos anos. A música e seus sentidos acrescentam sal e contexto ao conjunto de quadros e vinhetas pelos quais a vida das personagens nos é apresentada. A acção divide-se entre Cambridge e Praga, da primeira nascendo uma afinidade cultural e emocional com a vida e obra de Syd Barrett, que acaba transformado num dos pilares de referência pelos quais o tempo da acção evolui. Em Praga conhecemos, por sua vez, os efeitos na sociedade jovem do colectivo Plastic People Of The Universe, que assimila ensinamentos colhidos na cultura rock'n'roll ocidental e os projecta em eventos e manifestações numa sociedade que neles acaba por ver forças ainda mais perigosas que os dissidentes.
A peca não só permite o recordar da história como lança sólido debate ideológico na sua fundação, opondo essencialmente as visões de um professor de Cambridge que, mesmo contra todas as manifestações contrárias, ainda acredita no sonho comunista e um antigo aluno seu, checo, que se muda para Praga com a sua colecção de discos (Pink Floyd, Syd Batrrett, Beach Boys, Velvet Underground, Kinks), para neles ver reconhecidos inesperados manifestos de oposição ao regime.
Encenação espantosa de Trevor Nunn e inteligente cenário criado por Robert Jones para uma peça onde a música, recordada nas versões originais de gravações de Syd Barrett, Rolling Stones, Pink Floyd, Velvet Underground, Beach Boys ou U2, entre outros, e usada com propriedades narrativas.

Cão de água

Ano Bowie – 30
Anúncio para as águas Vittel (2003)


A imagem remete-nos, de imediato, para a capa (e contracapa) do álbum de 1974 Diamond Dogs. É essa a referência, obviamente, mas não temos, desta vez, o próprio Bowie a "reproduzir" a sua própria representação. Trata-se de David Brighton, célebre imitador do camaleão e, à sua peculiar maneira, figura do entertainment e do seu jogo de máscaras.
Mas o contexto não é, de modo algum, estranho ao criador de Ziggy Stardust e outras derivações teatrais. Isto porque esta imitação é apenas uma das várias que figuram num spot publicitário que, em 2003, Bowie patrocinou para as águas Vittel (cujo site... borbulha). Sendo Bowie alguém que sabe sustentar a sua imagem em qualquer contexto, o anúncio está concebido como uma espécie de rápida deambulação por várias personagens da sua carreira. Em todo o caso, quem faz de Bowie é Bowie, lui même, celebrando as qualidades da água francesa. Vale a pena ver, até porque se trata de um exercício brilhante de publicidade televisiva.

quarta-feira, fevereiro 21, 2007

Half Nelson: um pequeno grande filme

Não é a primeira vez que nos referimos, aqui, ao filme Half Nelson, de Ryan Fleck (escrito e produzido por Anna Boden e o próprio realizador). Em Agosto de 2006, o seu impacto nos circuitos independentes americanos — e também a excelente banda sonora dos Broken Social Scene — levou-nos a chamar a atenção para um filme que, nessa altura, não tinha difusão prevista para Portugal. Perguntávamos mesmo se algum distribuidor se poderia interessar pelo seu lançamento. Pois bem, a resposta está dada: com a chancela da Ecofilmes/Vitória Filme, Half Nelson aí está, com o título português (não muito feliz...) Encurralados.
Centrado na crise de uma personagem peculiar — um professor branco, de um liceu de alunos maioritariamente negros, lutando com a sua dependência de algumas drogas —, Half Nelson é um exemplo brilhante de uma produção independente que, a partir de um pequeníssimo orçamento de 700 mil dólares (pouco mais de 530 mil euros, menos que a maior parte dos filmes portugueses produzidos em anos recentes), possui uma acutilância realista e uma densidade dramática invulgares.
A nomeação de Ryan Gosling para o Oscar de melhor actor (a única de Half Nelson) distingue um trabalho de invulgar subtileza afectiva. Em todo o caso, seria errado reduzir o filme a um one-man-show. Bem pelo contrário: as interpretações são todas admiráveis, com destaque para Shareeka Epps [ambos na imagem], compondo uma aluna de 13 anos que estabelece uma relação de singular cumplicidade com o seu professor. Que ambos saibam representar essa relação muito para além de qualquer cliché (dramático ou moral), eis o que diz bem da riqueza e complexidade deste filme que merece ser descoberto.

Filme de episódios para os 60 anos de Cannes

David Cronenberg, Manoel de Oliveira, Alejan-dro González Iñárritu, Nanni Moretti e Gus Van Sant são alguns dos autores do filme Chacun son Cinéma, produzido pelo Festival de Cinema de Cannes para comemorar a sua 60ª edição. De acordo com um comunicado de Gilles Jacob, presidente do certame, 35 realizadores (dos cinco continentes e de um total de 25 países) foram convidados a exprimir-se, de forma brevíssima — 3 minutos — sobre o seu actual estado de espírito "inspirado pela sala de cinema". Nenhum dos autores viu os fragmentos dos outros, não tendo sequer qualquer informação sobre as respectivas sinopses. O resultado, sublinha Jacob, é "surpreendente" e "improvável". Por exemplo, "[Wim] Wenders filmou no Congo, Tsai Ming Liang em Kuala Lumpur e Cronenberg... na casa de banho!"
O conjunto das 35 contribuições forma uma longa-metragem, a apresentar no dia 20 de Maio, em sessão especial do Festival (esta 60ª edição decorrerá entre 16 e 27 de Maio). É a seguinte a lista completa dos realizadores de Chacun son Cinéma:

* Theo Angelopoulos
* Olivier Assayas
* Bille August
* Jane Campion
* Youssef Chahine
* Chen Kaige
* Michael Cimino
* Ethan & Joel Coen
* David Cronenberg
* Jean-Pierre & Luc Dardenne
* Manoel De Oliveira
* Raymond Depardon
* Atom Egoyan
* Amos Gitai
* Hou Hsiao Hsien
* Alejandro González Iñárritu
* Aki Kaurismaki
* Abbas Kiarostami
* Takeshi Kitano
* Andrei Konchalovsky
* Claude Lelouch
* Ken Loach
* Nanni Moretti
* Roman Polanski
* Raoul Ruiz
* Walter Salles
* Elia Suleiman
* Tsai Ming Liang
* Gus Van Sant
* Lars Von Trier
* Wim Wenders
* Wong Kar Wai
* Zhang Yimou.

terça-feira, fevereiro 20, 2007

London Calling 2007 (Parte 3)

Escondido numa das portas que encontramos na grande alameda que liga Trafalgar Square ao palácio de Buckingham, o ICA (Institute for Contemporary Art) é ponto de visita obrigatória em Londres. Não só a sua pequena livraria é um concentrado útil de novos títulos em áreas como a música, cinema, filosofia, psicologia e teoria das artes em geral (com espantosa selecção de DVD a acompanhar os livros e interessante escaparate de revistas a completar a coisa), como a programação da casa garante tempo bem passado.
Esta semana, num dos dois ecrãs que o ICA mantém em actividade permanente, assegura-se a estreia britânica do quarto filme de Eric Steel, o assombroso The Bridge, documentário sobre a multidão de suicídos que, anualmente, tem lugar na ponte Golden Gate, em São Francisco. Ideia nascida depois da leitura, pelo realizador, de um artigo na New Yorker (Jumpers, assinado em 2003 por Tad Friend), o filme comecou por obrigar Eric Steel a uma longa etapa de monitorização do tabuleiro da ponte. Dia após dia, ao longo de 2004, apontou a objectiva aos transeuntes, conseguindo filmar suicídios, assim como muitas tentativas frustradas de saltos. Estas imagens, das quais surge uma medula de imagem real que sustenta a coluna vertebral narrativa do filme, definem histórias. E conduziram depois o realizador ao encontro de pessoas ligadas aos respectivos suicidas (familiares, amigos, numa ocasião mesmo um sobrevivente a queda). Essas entrevistas fornecem o texto que escutamos, no qual cada um tenta, mais que libertar culpas, compreender a situação de desespero que conduziu a tão definitivos saltos. Emotivo, o clima construído pela soma das palavras que escutamos nas entrevistas e a consequente justaposição das imagens reais captadas algum tempo antes, tudo sublinhado por uma quase pacífica banda sonora de Alex Heffes (que lembra, por vezes, a música que Peter Nashel compos para The Deep End, de Scott McGehee e David Siegel). De resto, são frequentes as sequências de quase silêncio, apenas as notas ao piano e planos da ponte em dia "normal", bailados para carros em movimento, nuvens pelo meio, barcos e ondas em baixo, em contraste com os golpes de outras realidades que, muitas vezes, encaramos em primeira descoberta como apenas o som de algo que cai na água.
Nunca "voyeurístico", nunca vampírico, o interesse do realizador pelos casos que retrata ajuda a construir rostos e histórias pessoais, mais intensos que apenas os números com os quais as estatísticas fazem da Golden Gate o local mais procurado por suicidas. De resto, o enumerar final dos nomes dos 24 suicídios ali registados ao longo do ano durante o qual Eric Steel olhou de perto a ponte deixa-nos, contadas as suas histórias, com a sensação de que cada caso não foi apenas mais um número. Mas sim o fim trágico de mais uma história humana difícil.

PS. O filme foi já adquirido por uma distribuidora portuguesa. Esperemos que não apenas para cedência a pontual festival, com ordem discreta para edição em DVD logo a seguir...

Cahiers du Cinéma: a revolução em "e"

De vez em quando, sem alarido, mas com precisão, importa chamar as coisas pelos seus nomes. E dizer, neste caso, que os Cahiers du Cinéma estão a fazer a sua própria revolução — para eles, para nós. Que é como quem diz: uma passagem para a Web, mantendo a edição em papel, mas disponibilizando essa mesma edição num novo site: www.e-cahiersducinema.com. Como diz a apresentação editorial da revista: o "e" do novo endereço tem a ver com electrónica e english.
Para já, a revista — fundada em 1951, pelo grande André Bazin e seus pares, com um papel decisivo na eclosão da Nova Vaga francesa — oferece um número zero que é uma pequena maravilha informática. Herdando algumas técnicas dos "e-books", nele encontramos um conjunto de páginas (incluindo trailers de filmes) que podemos percorrer, ampliar, sublinhar, anotar... Uma nova forma de leitura/percepção que se oficializará a partir de 9 de Março, com a edição informática da revista que estará nas bandas no dia 7.

segunda-feira, fevereiro 19, 2007

London Calling 2007 (Parte 2)

Contada em cena, a explicação pode parecer coisa de bom argumentista. Perante um London Palladium completamente esgotado para ver a recriação de um histórico concerto de Judy Garland no Carnegie Hall em 1961 (que Rufus Wainwright levou a cena, na mesma sala nova-iorquina, por duas noites, no Verão de 2006), o cantor explicava que, na verdade, tem muitas afinidades com a mulher que ali homenageava. Segundo nos contou, a primeira namorada do seu pai, Loudon, terá sido Liza Minnelli (uma das filhas de Judy Garland). Conheceram-se quando a familia Wainwright temporariamente morou em Beverly Hills, o jovem Loudon sendo então visita regular da casa de Judy Garland... Foi namorico de pouco tempo, com fim ditado por nova mudança. Ainda houve uma carta de Loudon a Liza, perguntando-lhe se ela gostava desse novo cantor... o Elvis... Sem resposta, a história ficou por ali... Todavia, há uma razão recente, mais racional e menos de conto de fadas, a justificar o concerto que Rufus Wainwright criou em volta dessa memória histórica de Judy Garland. Pouco tempo depois do 11 de Setembro, com vida pessoal tão magoada como a cidade onde já vivia, encontrou, em CD, a gravacao dessa noite com Judy Garland no Carnegie Hall, em 1961. Comprou o disco, escutou-o vezes sem conta. E deu por si a cantar todas as canções... Cinco anos depois, com artwork replicando em tudo esse mesmo concerto, Rufus subia ao mesmo palco para, canção a canção, recriar aquele momento. Críticas favoraveis, sala esgotada por duas noites. E, agora, duas datas em Londres (no Palladium, onde a própria Judy Garland em tempos actuou) e uma em Paris, no mítico Olympia... Para o fim do ano, a edição (ao que parece apenas em DVD) desta aventura que, na verdade, em nada interfere musicalmente com o curso natural da obra do cantor canadiano.
O alinhamento de 1961 foi seguido a rigor, acompanhado por orquestra de 40 elementos em palco, maestro sempre atento aos imprevistos de um Rufus que assumiu esta revisitação com segura pose informal. Interrompeu o alinhamento tantas vezes quantas Judy o fez, para contar histórias, naturalmente com o já tradicional filtro bom humor à la Wainwright. Porém, se a encenação foi informal (apesar da pompa da indumentária Viktor & Rolf criada para o momento), o concerto foi musicalmente competentíssimo, revelando, mesmo sob autocrítica de quem sabe que não tem voz para cantar jazz, que Rufus é magnífico intérprete em todas as frentes. E quando não se ajusta ao tom, o teatro do momento resolve a questão e a coisa acaba sempre consequente. Dividida em dois actos, a performance não só homenageou Judy Garland como celebrou a herançaa dos grandes musicais dos palcos da Broadway, do West End londrino e do cinema de Hollywood. Rogers & Hammerstein, Noel Coward ou George Gershwin foram autores convocados a um desfile de canções (25 no programa oficial, mais alguns "encores" by public demand), entre as quais se escutaram Puttin On The Ritz, Zing Went The Strings Of My Heart, Chicago, A Foggy Day In London Town ou o inevitável Over The Rainbow, o clímax esperado. Espantosa foi ainda a participação da mana Martha Wainwright, numa soberba versão de Stormy Weather. A outra convidada em palco foi Lorna Luft (filha de Judy Garland e Sidney Luft, portanto, meia irmã de Liza Minnelli), com quem Rufus cantou em dueto After You've Gone.
A sala, onde marcava presenca a nata do showbiz londrino, aplaudiu de pé e não estranhou que, nem nos "encores", Rufus Wainwright tenha resistido à tentação de "contaminar" a noite com canções que não pudessem ter sido cantadas em 1961. Como o próprio cantou, a dada altura, durante o concerto: That's Entertainment!

domingo, fevereiro 18, 2007

Uma cultura de restos

Encontrei esta informação em dois blogues: o de Francisco Rui Cádima (irreal tv) e o do Projecto Mediascópio, da Universidade do Minho (Jornalismo & Comunicação). Por sua vez, ambos remetiam para análises recentemente divulgadas pela MediaMonitor, a partir de dados coligidos pela Marktest.
É muito simples descortinar as tendências dominantes que aqui se sistematizam. Cada área de programação é resumida em função da oferta e da procura, ou seja, da percentagem de programas nessa área e da respectiva "procura"/audiências. Tendo em conta que a esmagadora maioria da "ficção" (25,4%) são telenovelas e seus derivados, que o "divertimento" (14,5%) é dominado por sinistros reality shows e penosos concursos, enfim, que a "publicidade" (16,4%) representa quase um sexto dos tempos de emissão, há uma dedução muito simples a extrair: cerca de metade (ou mais...) das nossas televisões está ocupada por produtos que reduzem os espectadores a um infantilismo militante. Daí uma velha verdade, cuja actualidade se mantém: avaliar as "opções" dos espectadores de televisão pelos números das audiências é uma maneira simplista — e, quase sempre, demagógica — de escamotear o facto de... não haver opções!
Do meu ponto de vista, importa discutir a própria terminologia da parcela mais curta, a chamada "arte e cultura". De facto, tudo o resto também é cultural — as opções dominantes na área da ficção, do divertimento e da publicidade (e da própria informação, hélas!) definem e consagram uma cultura da preguiça mental, da banalização humana e da desresponsabilização individual. Em todo o caso, mesmo não lidando de momento com essa fundamental questão filosófica e política, importa fixar o resto dos restos: 0,3% para a área de "arte e cultura" é uma vergonha mediática. E que a procura seja 0,0% é algo que importa considerar na sua mais crua objectividade: não se pode procurar — nem encontrar — o que não está lá.

Filme chinês vence em Berlim

Tu ya de hun shi ("O Casamento de Tuya"), de Wang Quan'an, arrebatou o Urso de Ouro da 57ª edição do Festival de Berlim — ven-cedor inesperado, segundo a maior parte dos relatos, se-cundarizando, por exemplo, The Good Shepherd/O Bom Pastor, de Robert De Niro (distinguido com um Urso de Prata especial, pelo conjunto do seu elenco). O prémio da melhor música foi para Hallam Foe, filme de David MacKenzie (Young Adam, A Casa da Loucura) com canções dos Franz Ferdinand. O palmarés foi atribuído por um júri presidido pelo cineasta americano Paul Schrader.

FOTOGRAMAS: One + One, 1968

É um cartão de passagem de uma cena para outra. Mas, no cinema de Jean-Luc Godard, qualquer informação é um exercício estético (aplicando o seu método de permanente interrogação da linguagem, poderíamos dizer: na palavra "informação" há "forma"). Vivia-se um presente visceralmente político, marcado pelos temas, ânsias e combates de Maio 68. Escrevever "under the stones the beach" era, por isso, um jogo plural de informação e ironia, de fria objectividade e festiva trasnfiguração. Em primeiro lugar, convocava-se a mítica palavra de ordem das barricadas das ruas de Paris na qual se proclamava que, por baixo das pedras da calçada, era possível descobrir a "praia" — "sous les pavés la plage"; depois, a palavra "stones" remetia para os Rolling Stones, os cinco magníficos (ainda incluindo Brian Jones) que Godard descobria, num estúdio de Londres, a gravar a canção Sympathy for the Devil que, alguns meses mais tarde, surgiria como tema de abertura do álbum Beggars Banquet; outra palavra, "one" (destacada de "stones") faz alusão à expressão iniciática que era One + One, isto é, o genuíno título do filme e não Sympathy for the Devil, utilizado abusivamente pelos produtores; enfim, as letras soltas destacadas a negro (URSS) aludem a uma outra referência, central naquele momento, já que se tratava também de inventariar as cinzas da esquerda europeia ideologicamente ligada ao modelo político da União Soviética. One + One é, assim, em tudo e por tudo, um filme sobre a música do (seu) tempo. Mesmo um simples cartão, com uma caligrafia mais ou menos rudimentar, é um pequeno acontecimento de puro cinema.

ONE + ONE
Grã-Bretanha, 1968
Realização: Jean-Luc Godard
Produção: Eleni Collard, Michael Pearson, Iain Quarrier
Argumento: Jean-Luc Godard
Interpretação: Mick Jagger, Keith Richards, Brian Jones, Bill Wyman, Charlie Watts

sábado, fevereiro 17, 2007

London Calling 2007 (Parte 1)

Em tempo de celebração de memória de mais de 20 anos de actividade, os Pet Shop Boys lançaram, nos últimos meses, um DVD com um documentário que conta a sua história até aqui, um livro — Catalogue (ed. Thames & Hudson) — que retrata toda a sua obra gráfica desde os primeiros frames fotografados ao mais recente design ao serviço da sua música, e um disco ao vivo, retrato de uma noite, com orquestra, num palco da BBC, comemorando com pompa sinfónica uma obra que há muito é reconhecida entre as mais importantes da história da música pop. A estas três edições, o duo juntou um evento. Ou melhor, uma exposição, ainda patente numa das galerias do piso inferior da National Portrait Gallery (museu que há muito reconhece a importância da música pop no contexto do espaço artístico que tem por objecto).
Não é uma exposição de grandes dimensões (nem de perto consegue o olhar abrangente que o livro Catalogue retrata). Trata-se de um interessante conjunto de fotografias, uma das quais, pouco divulgada, assinada por Robert Mappelthorpe, a quem a EMI americana pediu uma sessão com os Pet Shop Boys em 1986. Mais conhecidas, estão aqui as imagens que deram depois capa a canções como Rent, It's a Sin ou West End Girls. Fotos que, mesmo sem o lettering, pedem que cantem para a capa dos respectivos discos... Não falta, claro, uma selecção de capas de discos nas respectivas artes finais. E uma integral de telediscos, a passar constantemente num ecrã (com som para toda a galeria). Pop, sem dúvida.
Entretanto, terminada a exposição de retratos de David Hockney, a mostra que agora tem honras de destaque nas salas da National Portrait Gallery é Face Of Fashion, uma colecção de retratos de fotógrafos com créditos no mundo da moda, como Mert Alas, Marcus Piggot, Corine Day ou Steven Klein.
Menos interessante é From Manet to Picasso, percurso feito de pintura que se pode ver ali ao lado, numa das galerias de exposições temporárias da National Gallery. Há obras notáveis, sobretudo quadros célebres de Seurat, Cézanne ou Van Gogh. Mas sem um texto que una as imagens e nos conte uma história, não há contexto que viva, assim, apenas por si. Uma visita à exposição permanente, contudo, perdoa a falta de trabalho extra na mostra temporária. E na sala onde cinco enormes e arrebatadoras pinturas de Turner enchem duas paredes, a alma reencontra texto no contexto.

O rumor californiano

Corre por aí, depois de pista dada numa muito recente entrevista, que o próximo estado dos EUA a ser cantado por Sufjan Stevens será... a Califórnia. A ideia contraria a "bolsa de apostas" de muitos admiradores do cantautor norte-americano, a maioria dos quais estando antes à espera de um disco sobre Rhode Island, o Oregon ou Minnesota... Sufjan Stevens, que mantém ainda firme a vontade de gravar um álbum dedicado a cada um dos estados dos EUA, começou pelo Michigan em 2003 e, em 2005, passou pelo Illinois (disco que, de resto, o transportou a um estatuto de visibilidade que antes não tinha conhecido). Numa outra entrevista, deu a entender que enquanto a família que ocupa a Casa Branca por lá morar, não pensa ter o Texas entre as suas metas imediatas... Califórnia, então? Ou apenas mais um rumor para manter fãs atentos?

Revista 'Mojo' celebra Sgt. Pepper's

No próximo dia 1 de Junho, completam-se quarenta anos sobre o lançamento de um dos mais míticos álbuns (porventura o mais mítico álbum) da história da música popular no século XX: Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band, a obra-prima com que os Beatles revolucionaram os conceitos de gravação e os valores formais da pop. Para quem gosta de comemorações (e não só, já que os resultados são magníficos), a revista Mojo decidiu começar bem cedo, oferecendo com o seu número de Março um CD — Sgt. Pepper... With a Little Help from His Friends —, nada mais nada menos que uma recriação das 13 faixas do original dos Beatles (+ um extra: All You Need Is Love, incluído pelos Echo & The Bunnymen na sua antologia de 2001, Crystal Days: 1979-1999).
No essencial, a gravação dos temas do "novo" Sgt. Pepper está entregue a nomes mais ou menos marginais, lidando com talento, elegância e, por vezes, um requintado savoir faire com a herança das canções de Lennon e McCartney (sem esquecer Within You Without You, de George Harrison). A revista inclui um extenso dossier, com texto principal a cargo de John Harris, recordando a produção do disco dos Beatles, o papel decisivo de George Martin, a complexa fabricação da foto da capa, enfim, o impacto da chegada do álbum ao mercado.
O alinhamento do CD da Mojo é este:
* Simple Kid - Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band
* Puerto Morto - With a Little Help from My Friends
* Circulus - Lucy in the Sky with Diamonds
* Fionn Regan - Getting Better
* 747s - Fixing a Hole
* Unkle Bob - She's Leaving Home
* Bikeride - Being for the Benefit of Mr. Kite!
* Stephanie Dosen - Within You Without You
* Chin Up Chin Up - When I'm Sixty-Four
* Dave Cloud & The Gospel of Power - Lovely Rita
* The M's - Good Morning Good Morning
* Simple Kid - Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band (Reprise)
* Captain - A Day in the Life
* Echo & The Bunnymen - All You Need Is Love

sexta-feira, fevereiro 16, 2007

Expressionismo(s)

Ano Bowie – 29
A capa de "Heroes" (1977)

Seja qual for a perspectiva a partir da qual abordemos o álbum "Heroes", a sua singularidade emerge como algo de radical na genealogia artística de Bowie. Peça central da "Trilogia de Berlim" — completada por Low (1977) e Lodger (1979) —, trata-se também de uma das mais belas capas da discografia de Bowie. A preto e branco, numa pose rigorosamente indecifrável, parte saudação para um exterior desconhecido, parte mergulho numa interioridade silenciosa, o protagonista expõe-se como uma estátua carnal, segura da sua própria abstração.
Trata-se de uma das duas capas que citam, directamente, Roquairol [reproduzido em baixo], um trabalho do pintor alemão Eric Heckel. A outra pertence a um outro álbum de 1977, produzido pelo próprio Bowie: The Idiot, opus 1 de Iggy Pop — também neste caso a pose de Iggy Pop recria a estranha geometria das mãos desenhadas por Heckel, acentuando uma bizarra verdade física.
Eric Heckel (1883-1970) foi um pintor expressionista, fundador, em 1905, do movimento "Die Brücke" ('A Ponte'), que viria a integrar, por exemplo, Emil Nolde. Em 1937, Heckel foi um dos artistas catalogados de "degenerados" pelos nazis, tendo sido destruída grande parte da sua produção. Depois da guerra, foi professor na Academia de Karlsruhe.

Soderbergh: Ocean's 11 + 12 + 13

Eis um caso singular de sequela sobre sequela. E com um somatório de ironia. Depois de Ocean's Eleven (2001) e Ocean's Twelve (2004), anuncia-se para este Verão Ocean's Thirteen (8 de Maio nos EUA, 7 de Junho em Portugal). Enquanto o leque base de actores persiste — George Clooney, Brad Pitt, Matt Damon, etc. —, a lista de convidados vai-se diversificando, desta vez incluindo Al Pacino. O primeiro teaser pode ser visto no site da Apple, em formato HD.
O realizador Steven Soderbergh segue, assim, uma lógica plural de trabalho, alternando com agilidade as pequenas (pequeníssimas) produções como Bubble e os grandes empreendimentos como este Ocean's Thirteen ou o anterior The Good German/O Bom Alemão (estreia portuguesa: 8 de Março). Nessa perspectiva, ele é um dos autores contemporâneos que mais, e melhor, tem sabido contrariar qualquer oposição maniqueísta entre os grandes orçamentos e as produções independentes.

quinta-feira, fevereiro 15, 2007

Magnum na blogosfera

Guantanamo Bay, Cuba (2006). Uma seta indicando a direcção de Meca.
Paolo Pellegrin/Magnum Photos

A Magnum já tem o seu blog. Trata-se, afinal, de fazer valer um valor básico: não apenas de divulgar e promover o trabalho dos fotógrafos da agência, mas também de o enquadrar, comentar e discutir. Aliás, o blog é muito explícito na sua abertura aos internautas (fotógrafos ou não), nele se escrevendo: "Convidamos os leitores do blog a enviarem posts sobre as histórias, acrescentando exemplos decorrentes das suas próprias experiências, das suas dúvidas e também das suas críticas."Entre os materiais disponíveis: um relato da actual experiência de Martin Parr, no Chile, integrada num projecto sobre praias turísticas; as memórias da visita de Paolo Pellegrin à base de Guantanamo [ver imagem]; e uma reflexão de Jonas Bendiksen sobre o viajar de avião (com foto, claro) e as emissões de gazes poluentes.

Bola de Berlim (4)

A foto que acompanha este post (que pode ser, portanto, entendido como uma 'Bola com Creme') poderia ter por título 'Berlin Alexandreplatz 07'. No ano em que um dos lançamentos em DVD mais visíveis em plena Berlinale não é mais que o histórico Berlin Alexanderplatz, de 1980, de Rainer Werner Fassbinder, (edição Arthaus, numa versão apenas para consumo interno, ou seja, em alemão, sem legendas), a célebre praça "central" da velha Berlim Leste (em franco processo de revolução nas formas e ofertas) foi um dos pólos do festival. O recentemente inaugurado cinema Cubix (da rede Cinestar, cujo multiplex na Praça Sony, no coração da Berlinale, foi outro dos centros mais agitados de exibições públicas e privadas) acolheu sessões diárias nas suas duas maiores salas, cada qual a fazer corar de vergonha o melhor da actual oferta lisboeta em dimensão (do ecrã e plateia), conforto, som, acolhimento, bares... Enfim, faz uma Berlinale quem pode...
A imagem mostra o foyer do andar superior do Cinestar Cubix, frente à sala 9. Lá fora, ao frio, a praça, a estação de S-Bahn, os ecos da velha Berlim Leste encontrados minutos antes, num café, na expressão vazia de alguns idosos, certamente clientes antigos dos cafés daquela praça, mas sem a cor ou a vida dos seus conterrâneos, da mema idade, algumas ruas mais a oeste... O muro desapareceu, mas deixou marcas.

quarta-feira, fevereiro 14, 2007

Cartas de Iwo Jima: escrita japonesa

Cartas de Iwo Jima não é exactamente a "continuação" de As Bandeiras dos Nossos Pais. De facto, Clint Eastwood nem sequer se preocupa em sublinhar os inevitáveis contrastes entre a visão dos combates para conquistar a ilha de Iwo Jima, primeiro do lado americano, agora no seio das tropas japonesas. Aquilo que prevalece — sobretudo se olharmos os dois filmes como outros tantos capítulos de um painel cinematográfico de quase cinco horas de duração (132 + 142 minutos) — é a noção de que há uma cruel distância entre os desígnios colectivos da guerra e a sua percepção (e vivência) no plano individual. No fundo, Eastwood filma heróis para quem a verdade do heroísmo não possui nada de redentor, muito menos de espectacular.
As Bandeiras dos Nossos Pais era um filme sobre uma sociedade (americana) fortemente dependente do poder do imaginário visual e, mais especificamente, da função simbólica das imagens — afinal de contas, a célebre fotografia dos soldados a erguer a bandeira americana em território conquistado ao Japão era uma espécie de máscara política que se transformava numa imenso (e festivo) logro colectivo.
Como contraponto, Cartas de Iwo Jima dá evidência àquilo que está implícito no próprio título: uma cultura em que os valores, as hierarquias e as tragédias passam pela escrita e pelo seu singular poder de ligar e religar os seres humanos (vale a pena ver o trailer japonês). Estamos perante um retrato de prodigiosa sensibilidade humanista do Japão, assinado por um autor que, nem por um momento, renega a sua fidelidade ao mais nobre cinema clássico de Hollywood.

Memórias dos 50 anos

Ano Bowie – 28
'Lou Reed - Rock and Roll Heart' (1998)


Há dez anos, portanto em 1997, David Bowie comemorou os seus 50 anos com um concerto em Nova Iorque. Um fragmento desse concerto — com Bowie e Lou Reed em palco — está no magnífico documentário que é Lou Reed - Rock and Roll Heart (1998), de Timothy-Greenfield Sanders, já disponível entre nós em edição em DVD. Chamando a Lou Reed "Rei de Nova Iorque", Bowie é um dos entrevistados (a par de Patti Smith, Philip Glass, John Cale, etc.), sublinhando o seu papel de referência para muitas derivações do rock e, em particular, para o gosto de experimentação inerente à sua música. O brinco com penas é estritamente Bowie.

She's (not) Madonna

Para o lançamento do single She's Madonna (cristalina canção de romantismo e mágoa fabricada com os Pet Shop Boys para o álbum Rudebox), Robbie Williams excedeu-se. Em sentido literal: saiu para fora de si. Em vez de inventar mais uma pose "Robbie Williams", escolheu ocupar o lugar da rainha de todas as poses. O resultado é, de uma só vez, espectacular (1), transfigurador (2) e de uma tristeza tocante (3).
* 1, espectacular — porque se trata, obviamente, de garantir a máxima das máximas — the show must go on —, sem prejuízo de isso funcionar como mecanismo de metódico desmantelamento de todas as ilusões.
* 2, transfigurador — porque Robbie surge como uma Material Girl burlesca (de um burlesco que nasce, não do excesso da caricatura, mas da paradoxal contenção com que dá uma entrevista); porque essa cantora se despe e transforma em... Robbie Williams; enfim, porque entre ambos se desenha uma espécie de coincidência impossível, genuinamente poética. E tanto mais quanto na canção se canta este cruel refrão:

I love you baby
but face it she's Madonna
No man on earth
could say that he don't want her
This look of love
says I'm leaving
you're frozen now
I've done the freezing
I'm walking out
Madonna's calling me


* 3, de uma tristeza tocante — porque tudo se passa como, se para além do sexo (ou através dele), já ninguém tivesse um lugar de partilha, ou pudesse protagonizar uma entrega, seja com quem for; porque, enfim, tudo nos fala da intensidade do(s) desejo(s) e, no final, todos parecem estar mais sós.
No frondoso (e também saturado) território dos telediscos, She's Madonna (realização de Johan Renck) é, talvez, a primeira obra-prima de de 2007. Para ver e rever.

Updike: por amor da América (*)

No começo de O Terrorista (Civilização Editora), a personagem central, um jovem de nome Ahmad, proclama: “Os demónios.” Refere-se ele a tudo o que a sua vista pode abarcar nos espaços do liceu que frequenta. E acrescente: “Estes demónios querem levar o meu Deus.” Ahmad é filho de uma mãe de origem irlandesa e de um imigrante egípcio (que os abandonou quando ele tinha três anos). Os “demónios” que assombram Ahmad — cujo poder se reforça através da sua própria idealização da figura ausente do pai — vão empurrá-lo para a esfera dos radicais islâmicos, a ponto de ele admitir espalhar a destruição e a morte no seu próprio país.
A perturbação central do novo romance de John Updike (Terrorist, no original) decorre menos da sua actualidade temática — a história da formação ideológica e prática de um potencial terrorista —, e mais da sua calculada inserção nos lugares e rotinas de um quotidiano visceralmente made in USA. Dito de outro modo: Updike não se deixa “esmagar” pela urgência política do tema, não apenas evitando qualquer sentido panfletário ou maniqueísta, mas também mantendo um surpreendente tom de visceral intimismo.
Como é óbvio, estamos longe dos seus mais recentes exercícios romanescos: Seek My Face (2002), obra-prima de discretas comoções, propunha uma espantosa viagem pelas memórias de uma velha pintora, a pretexto do encontro com uma jovem jornalista, enquanto o belíssimo Villages (2004) percorria a biografia de um homem através dos seus diversos lugares de passagem. O Terrorista é mais uma introspecção americana, claramente pós-11 de Setembro, embora sem ficar dependente do peso simbólico dos próprios atentados.
Nesta perspectiva, poderá dizer-se que o romance de Updike está “adiantado” em relação aos filmes que, também em 2006, reflectiram os traumas do 11 de Setembro de 2001 (Voo 63, de Paul Greengrass, e World Trade Center, de Oliver Stone). Liberto da “obrigação” factual do cinema, o autor dispensa a arqueologia directa dos atentados para construir uma ficção que, subtilmente, mobiliza algumas decisivas componentes temáticas do imaginário americano. A saber: a transmissão dos valores paternos; o equilíbrio entre os desígnios individuais e os valores colectivos; enfim, o amor da terra.
Na sua odisseia entre deuses e demónios (os seus e os dos outros), Ahmad conduz o leitor a um terrível reconhecimento: o da banalidade do impulso terrorista. Updike é esse criador de ficções que sabe que a ilusão e o artifício não são apanágio do escritor, começando, afinal, nas relações humanas, na sua luminosidade como nos seus equívocos. O Terrorista (numa tradução eficaz de Carmo Romão) é um espantoso livro para lidarmos com a complexidade do mundo contemporâneo, superando os muitos maniqueísmos que tantas vezes, erradamente, nos levam a ignorar as marcas divinas e os gestos demoníacos."

* Texto publicado na revista "6ª" - Diário de Notícias (9 Fev. 2007), com o título 'Uma América feita de deuses e demónios'

terça-feira, fevereiro 13, 2007

"Canciones" reinventadas (*)

Sobre Canciones Españolas>>> No seu mais recente recital na Fundação Gulbenkian (17 de Outubro de 2006), Barbara Hendricks conferiu especial importância aos temas de compositores espanhóis: são referências essenciais na definição da sua identidade artística e também na sua popularidade. Não admira, por isso, que no álbum de lançamento da sua nova editora (Arte Verum), Hendricks proponha uma antologia de “canciones”, sobretudo de autores de passagem entre os séculos XIX e XX (Enrique Granados, Fernando J. Obradors e Manuel de Falla), e ainda de Xavier Montsalvatge, que viveu no século XX. O destaque vai para as “Siete canciones populares españolas”, de de Falla, exemplo modelar de exaltação de um estilo em que a sensualidade se cruza com as máscaras da tragédia. O sueco Love Derwinger, no piano, assegura o rigoroso acompanhamento.

* Texto publicado na Revista Op (nº 21, Inverno 2006)

Lady M

A nova colecção dos armazéns H&M, a lançar no próximo mês de Março, parece ter perdido o "H". Isto porque dá pelo nome de "M by Madonna". Para evitar confusões, a senhora do "M" deixou-se fotografar por um velho cúmplice, de seu nome Steven Kline. Ele é o mesmo que, por exemplo, em 2002, a fotografou na série "X-Static Process" (exemplo em baixo) — não consta que essa série vá dar origem a alguma outra colecção. Temos pena, em todo o caso.

Luz e trevas

Maggie Cheung, por Paolo Pellegrin
Como é que vemos os actores dos filmes que vemos? Ou ainda: como é que os imaginamos fora dos filmes em que eles representam? Seguindo uma tradição do New York Times, o respectivo Magazine propõe uma retrospectiva de 22 actores que marcaram o ano de 2006. Helen Mirren, fotografada por Dan Winters, tem honras de capa. Lá dentro, encontramos, entre outros, Sacha Baron Cohen, Abbie Cornish, Penélope Cruz, Forest Whitaker e Maggie Cheung — esta última, citada por Clean (2004), de Olivier Assayas (estreado em 2006 nos EUA), surge numa magnífica imagem de Paolo Pellegrin, dando razão à noção clássica segundo a qual a estrela é aquela que, em qualquer circunstância, toma o poder sobre a luz, contra as trevas.

segunda-feira, fevereiro 12, 2007

Bola de Berlim (3)

NG Entre a vastíssima oferta cultural de Berlim conta-se uma interessante exposição no Deutsche Historisches Museum sobre propaganda. Kunst Und Propaganda (Arte e Propaganda, em português) compara as linguagens (sobretudo visuais) entre a Alemanha de Hitler, a Itália de Mussolini, a União Soviética de Estaline e os Estados Unidos de Rosevelt.
Há espantosas afinidades apesar das, por vezes, enormes distâncias ideológicas. O culto do corpo na Alemanha não foge ao russo. A celebração dos feitos da tecnologia americana não estão longe dos soviéticos. A presença de um sentido de ordem militarista alemão aproxima-se do italiano. As arquitecturas são semelhantes (os planos da Nova Berlim de Albert Speer não fogem ao geometrismo grandioso de Washington DC). A importância da família mora nos EUA, como na Alemanha…
A força da imagem (e carisma) dos líderes é transversal a todos. E depois das semelhanças, surgem as diferenças culturalmente decretadas ou ideologicamente formatadas. O protagonismo masculino só é “incomodado” pela força da presença da mulher (mãe) em Itália. A celebração da masculinidade (e virilidade) na Alemanha e EUA tem por contraponto uma “igualdade” homem/mulher na URSS… O centrar de uma imagem de progresso urbano na Alemanha e Itália contrasta com a dispersão de olhares rurais nos EUA e URSS… Todos diferentes… Mas, ocasionalmente, quase iguais.

Morte de uma Playmate

É uma daquelas mortes (*) sobre as quais não sabemos muito bem o que dizer. Eu, pelo menos, não sei — e sinto-me compelido a lidar com essa dificuldade. Sabemos, claro, que podemos sempre ceder à facilidade da caricatura mais ou menos machista: Anna Nicole Smith como repetição do cliché da "loura estúpida", de seios grandes e chancela da revista Playboy (Playmate de 1993, consagrada na capa da edição de Junho).
Podemos também evocar a inspiração óbvia de Marilyn — também Playmate, a primeira (Dezembro 1953) — e sublinhar como ambas morreram em cenários trágicos: Norma Jean aos 36 anos, segundo os registos da época por uma dose excessiva de pílulas Nembutal; Anna Nicole Smith aos 39 anos, aparentemente devido aos efeitos combinados de medicamentos e álcool (embora a polícia tenha afastado a hipótese de crime, prosseguem as investigações sobre as circunstâncias da morte).
*
Depois, tudo isto se baralha pelo próprio aparato mediático que (sempre) envolveu Anna Nicole Smith e a transformou — com a sua passividade ou a sua conivência — em matéria de eleição para o espírito "tablóide" de muitas formas contemporâneas de informação. A sua vida parece ter-se construído (ou destruído) como uma acumulação de peripécias em que o trágico e o burlesco coexistem num jogo de terrível indiferença mútua: desde a morte do filho de um primeiro casamento (em Setembro de 2006, tinha ele 20 anos) até ao casamento com um milionário (tinha ela 26 anos e ele 89), passando pelas muitas peripécias relacionadas com as bruscas alterações do seu peso, Anna Nicole Smith viveu, de facto, in the spotlight, suscitando reacções sempre contraditórias, desde a violência moral da hipocrisia até à impotência militante da piedade.
Daí também os insólitos contrastes da sua carreira — não esquecendo que, no seu caso, carreira pública e vida privada parecem fundir-se num infinito espectáculo de exposição pueril, tendencialmente obscena. Claro que Anna Nicole Smith nunca foi uma actriz consistente, mas é um facto que a primeira das suas participações em cinema teve a chancela dos mais "intelectuais" autores dos EUA, os irmãos Joel e Ethan Cohen, e ocorreu em The Hudsucker Proxy/O Grande Salto (1994), protagonizado por Tim Robbins, Jennifer Jason Leigh e Paul Newman. Em todo o caso, o seu papel mais emblemático, por assim dizer integrando a caricatura da sua persona, terá sido num dos títulos paródicos da série Naked Gun, com Leslie Nielsen: Aonde é que Pára a Polícia 33 1/3 - O Insulto Final (1994). Por outro lado, a figura pública de Anna Nicole Smith é também inseparável de uma actividade social de envolvimento com alguns grupos militantes. Ela foi, por exemplo, uma das mulheres que aceitou posar para a PETA (People for the Ethical Treatment of Animals), surgindo numa campanha contra o uso de peles de animais em vestuário, recriando a célebre iconografia de Marilyn [imagem de abertura deste post] num quadro de Os Homens Preferem as Louras (1953), de Howard Hawks.
Por tudo isso, por todos esses contrastes, dir-se-ia que a morte prematura e brutal de Anna Nicole Smith não pode deixar de ser recebida como uma ferida dolorosa no interior de uma cultura popular sempre carente de espectáculo e glamour. Scott Holleran, do Box Office Mojo, por exemplo, lembra a dimensão mais cruel de circo do mundo de que ela, por assim dizer, exaltou a luz, sofrendo nas suas muitas zonas de sombra. No New York Times, Caryn James refere a filha de cinco meses que ela deixa, sublinhando a tristeza da sua fama, na vida como na morte. Entretanto, numa perspectiva seca e pragmática, afinal muito realista, escreve-se no The Village Voice que aqueles que a "exploraram" em vida, continuarão a fazê-lo depois da sua morte.
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Vivemos num mundo de "prós & contras" cuja lei mais forte é a de nos obrigar a escolher de forma maniqueísta, sempre que a própria complexidade dos factos ou das ideias é demasiado atípica ou perturbante. Ora, face a Anne Nicole Smith, a insuficiência dessa lei é tanto maior quando a sua vida — e, sobretudo, a sua morte — decorre da própria cultura (temática, visual e simbólica) que todos os dias consumimos. E vamos continuar a consumir, como se ela ainda vivesse.

* ANNA NICOLE SMITH — nome verdadeiro: Vicky Lynn Marshall (28 Nov. 1967 - 8 Fev. 2007)