terça-feira, outubro 31, 2006

De que falamos quando falamos de comédia? *

Na edição de 22 de Outubro de Herman Sic foram entrevistados os actores principais (José Pedro Gomes e António Feio) e o produtor (Leonel Vieira) de Filme da Treta. Todos verberaram a marginalização a que estaria sujeito o género cómico: nos jornais de referência, ignorando os trabalhos teatrais de ambos os actores, e no ICAM, boicotando a produção de comédias.
As políticas do ICAM poderão ser muito discutíveis e, face à televisão, também muito limitadas, mas o boicote a algum género de filmes nunca foi um dos seus princípios. Quanto à indiferença de alguns jornais, não será tão radical como a que a produção de Filme da Treta decidiu praticar em sentido contrário, não mostrando o filme à imprensa, quebrando uma prática salutar vigente há quase três décadas, tanto para filmes portugueses como estrangeiros. Se os profissionais que fizeram Filme da Treta julgam que discutir as qualidades formais do seu trabalho é o mesmo que negar o seu direito a existir, eis um problema psicológico que não me compete enfrentar, nem quero empolar.
Por tudo isso, chocou-me ouvir Herman José resumir de forma anedótica a complexidade artística e financeira de tudo o que estava a ser (apenas) aflorado. Concretamente, Herman José achou por bem denunciar aquilo que chamou “racismo cultural” contra a comédia. E chocou-me (insisto na palavra) porque sendo ele, há mais de vinte anos, o nosso melhor actor de comédia, sempre na linha da frente da cultura popular, carece de autoridade factual para usar uma palavra tão brutal quanto “racismo”, mesmo (ou sobretudo) em tom de displicente ironia.
Faço parte dos primeiros a ter reconhecido e celebrado (num jornal de referência, hélas!) a excelência de Herman José nos tempos pioneiros do “Tony Silva”. E se não preciso que o actor concorde com as reticências que me têm suscitado outros momentos da sua carreira, não posso aceitar que as generalizações fáceis arrasem assim o trabalho de quem escreve, em última instância esquecendo a diversidade da própria obra de Herman José. Admiro de mais o seu talento para poder aceitar passivamente a ligeireza das suas palavras panfletárias. A propósito: os sketches inspirados nos programas Canta por Mim e Dança Comigo (e... Chama-me Nomes) foram brilhantes!
* Texto publicado no "Diário de Notícias" (29 Out.), com o título "Racismo cultural".
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segunda-feira, outubro 30, 2006

Discos da semana, 30 de Outubro

Vários “Marie Antoinette”
Desde cedo Sofia Coppola fez saber que iria usar em Marie Antoinette canções de bandas punk e pós-punk, ou, como a própria descreveu, neo-românticas (leitura livre e muito pessoal, já que este é rótulo habitualmente aplicado a outros casos da mesma época). Siouxsie & The Banshees, Bow Wow Wow, New Order, The Cure, Gang Of Four, Radio Dept., Windsor For The Derby ou The Strokes (estes dois últimos mais recentes) são alguns dos convocados a Versalhes. Não para apenas dar largas a um choque de identidades entre a imagem mostrada e o som que a ilustra, mas como expressão possível de uma opção impressionista, na primeira pessoa, através da qual a realizadora pretendeu retratar a jovem rainha e o seu mundo. Ceremony, dos New Order, por exemplo, é jogo de contraste entre um tom festivo aparente e uma melancolia interior, que em tudo se ajusta ao filme. Assim como Hong Kong Garden, de Siouxsie & The Banshees é hedonismo em explosão, perfeita escolha para um baile na ópera de Paris, que a rainha e um grupo de amigos visitam, incógnitos. Mas nem só de soberbas canções de genética punk (e afins) vive a música que se escuta em Marie Antoinette. O disco, duplo, divide inteligentemente as faixas entre um CD1 de face mais pop e um CD2 de tez ambiental, aqui colhendo tanto peças de época (de compositores como Couperin ou Vivaldi) ou composições essencialmente dominadas pelas electrónicas recentes por nomes como Aphex Twin ou os repetentes Air (que assim fazem o pleno nos três filmes de Sofia Coppola). Entre canções de travo punk e peças de época, a banda sonora de Marie Antoinette é elemento de importância estrutural na definição da visão impressionista e estilizada pretendida pela realizadora. Controversa ou não, a escolha promove, além do filme, a edição de um disco cujo alinhamento garante uma lógica de coerência inquestionável. E garante, dado o berço em cinema que lhe deu razão de existir, uma das melhores bandas sonoras em disco de todo este ano.

The Gift “Fácil de Entender”
Nem apenas um compasso de espera antes de um novo álbum, nem exactamente um live album ou mesmo um best of. Mas um pouco de tudo isto ao mesmo tempo. CD duplo e DVD, este é um live em estúdio que parte do conceito AM/FM e a ele aplica uma lógica de concerto em duas faces, que concilia as canções do último álbum com algumas canções mais antigas. Registo sem falhas, o já habitual perfeccionismo ao serviço de um registo profissional e competente. O suporte em DVD permite o registo de som e imagem que os vídeos em VHS já editados não ofereciam. No áudio, a novidade em dois inéditos e numa versão segura, orquestrada, de Fácil de Entender. Nos inéditos há o “chapa cinco”, eficaz mas pouco entusiasmante de Nice And Sweet. E o ligeiro levantar do véu sobre eventuais destinos futuros num 645 que parece mais atento ao som do presente... Interessante, mas com sabor a fim de ciclo. Haja uma pausa, agora. E um criterioso reinventar de caminhos para, a tempo certo, garantir um regresso consequente.

Luna “Best Of Luna”
Enquanto por cá, salvo pontuais excepções, as editoras fazem best ófes para salvar as contas no Natal, por outras paragens outros aparecem porque há histórias para contar. É o caso desta soberba caixinha de memórias de uma das mais belas bandas indie pop de 90, recentemente desactivada. Herdeira, pela presença protagonista de Dean Warenham, dos Galaxie 500, a música dos Luna (guitarras sedutoras, uma secção rítmica segura e uma escrita herdeira de Tom Verlaine) trouxe um apelo de sonho a uma pop de personalidade vincada, alicerçada sobre uma multidão de referências de primeira água. Algumas dessas referências, juntamente com outros sinais de bom gosto, servem-se em versões num CD extra à antologia. Velvet Underground, Gaisnbourg, Blondie, John Lennon, Kraftwerk, Suicide ou Talking Heads, ao luar, como complemento a uma belíssima colecção de grandes canções editadas entre 1992 e 2004..

Pernice Brothers “Live A Little”
O sucessor do magnífico Discover A Lovelier You vê os Pernice Brothers a regressar ao produtor que lhes registou a estreia em 1998 e com quem em tempos Joe Pernice trabalhara nos Scud Mountain Boys. Todavia, não parecem querer abandonar o filão pop clássico ao qual se dedicaram depois de um passado alt-country. Na verdade, face aos seus discos mais recentes talvez se verifique um polir das arestas evidenciadas em Yours, Mine & Ours (2003) e uma maior contenção na luxúria dos arranjos do álbum de 2005. O único problema deste novo disco encontra-se apenas no naipe de canções levadas a estúdio. Bem construídas e sólidas, mas longe da oferta que fez desses dois álbuns verdadeiras peças obrigatórias para gostos classic pop.

My Life Story “Sex & Violins”
Descritos numa expressão, os My Life Story não são mais que uma espécie de Divine Comedy de segunda linha. Com carreira musical desde 1980, o britânico Jake Stillingfield apresentou-se sob a designação My Life Story em 1990, cordas e arranjos sumptuosos em lugar das guitarras e ritmos habituais nas lides pop/rock. A carreira da banda, irregular, produziu alguns momentos interessantes, como Girl A Girl B Boy C (produzido pelo filho de George Martin) ou Sparkle, do álbum de 1996, talvez o mais sólido da obra da banda. Este best of mostra bem a irregularidade da sua produção (e como a coisa piorou chegados a 2000). Pena a ausência de um texto que conte que histórias estas músicas encerram.

Também esta semana: M Ward, Joana Amendoeira, Ann Pierlé, Aimee Mann, The Who

Brevemente:
6 de Novembro: Balla, Mariza (ao vivo), The Matches, Kool & The Gang (antologia), Philip Glass (ópera e BSO The Illusionist), Moby (best of), Acorda (compilação em mp3), Agnés Jaoui
13 de Novembro: Jarvis Cocker, Albert Hammond Jr, Kaada
20 de Novembro: Cool Hipnoise

Novembro: Sam The Kid, Protocol, Goldfrapp (remisturas), Duran Duran (2 reedições), Jay Jay Johansson, Humanos (ao vivo), Tom Waits, Sons & Daughters, Bryan Ferry, The KBC, Third Eye Foundation, JP Simões, U-Clic, Joseph K (antologia)
Dezembro: Sonic Youth (lados B), Rodrigo Leão (best of)

Estas datas provém de planos de lançamento de diversas editoras e podem ser alteradas a qualquer momento

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domingo, outubro 29, 2006

Discos Voadores, 28 de Outubro

Uma visita a Versalhes, tendo por cicerones Sofia Coppola e a “sua” Marie Antoinette, é o destino desta semana.

Bright Eyes “I Will Be Grateful For This Day”
Small Sins “Threw Them All Away”
Gothic Archies “We Are The Gothic Archies”
Balla “O Fim da Luta”
Camera Obscura “Come Back Margaret”
Semi Finalists “You Said”
Bow Wow Wow “Aphrodisiac”
The Pipettes “We Are The Pipettes”
Cansei de Ser Sexy “CSS Suxx”
PJ Harvey “Water”
Clinic “Harvest”
TV On The Radio “Hours”
Jarvis Cocker “Don’t Let Him Waste Your Time”
Van She “Kelly”
Spartak “The Parsecs”

Sérgio Godinho “O Às da Negação”
Beck “We Live Again”
Final Fantasy “I’m Afraid Of Japan”
Siouxsie & The Banshees “Hong Kong Garden”
New Order “Ceremony”
Bow Wow Wow “I Want Candy”
Gang Of Four “Natural’s Not In It”
Adam & The Ants “Kings Of The Wild Frontier”
Jesus & Mary Chain “Just Like Honey”
Air “Playground Love”
Windsor For The Derby “The Melody Of A Fallen Line”
The Cure “Plainsong”
U-Cilc “Robot’N’Roll”

Discos VoadoresSábado 18.00-20.00 / Domingo 22.00 -24.00
Radar 97.8 FM
ou www.radarlisboa.fm

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sábado, outubro 28, 2006

Selecção natural

Aos poucos a geração "novo rock" da década 00 vai sendo alvo da inevitável selecção natural. E passado o entusiasmo da descoberta, aos poucos, os menos aptos (leia-se menos criativos ou mais oportunistas) acabam de lado... Primeiro os The Faint, com um quarto álbum que em nada mostrava a garra de Danse Macabre. Do segundo álbum dos Futureheads ninguém quis ouvir falar... Depois os The Killers, com um segundo álbum, acabado de editar, de equívoco absoluto, ditado pela aparente necesidade de abandonar as electrónicas e rumar a uma coisa "mais séria"... Viu-se o sério que foi! Agora são os The Bravery, que anunciam para o seu próximo disco um som menos electrónico, porque, ao que se parece, se cansaram disso... Os dois inéditos que vi num concerto em Londres eram o pior que levaram ao palco... Ou seja, nova potencial baixa a caminho... E assim será, até que, daqui a uns anos, teremos connosco apenas os sobreviventes. Quase que aposto que os encontraremos entre os melhores, ou seja, Interpol e Cansei de Ser Sexy. E, caso saibam resistir, os White Rose Movement e She Wants Revenge. Houve belos discos e, acima de tudo, algumas boas canções, raros contudo os casos com horizontes acima dos feitos já mostrados. Como em tantos outros "movimentos" ou "ondas", poucos são sempre os que ficam para contar como foi.

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O regresso dos Abba?

Abba, mas ao jeito de French And Saunders. Se os quatro "originais" não se querem juntar, subam estes ao palco. Iguais. Mais que os sósias que por aí andam... C'est La Vie C'est La Vie (C'est Good For You C'est Bad For Me), a canção que os suecos nunca escreveram, mas que deles (quase) podia ter nascido... Ora vejam:

Os lados B dos Sonic Youth

Os Sonic Youth anunciam, para o mês de Dezembro, a edição de uma antologia de lados B, faixas originalmente apresentadas em compilações e alguns inéditos. Terá por título The Destroyed Room: B-Sides And Rarities e representará a última obrigação contractual dos Sonic Youth com a Geffen, editora que não será, necessariamente, a morada futura da banda. Ao que parece há insatisfação da parte dos Sonic Youth face a algumas atitudes da Geffen, nomeadamente alguns afastamentos de profissionais encarregues do A&R e marketing da banda precisamente no momento da edição do álbum de originais deste ano, Rather Ripped. Tais afastamentos poderão, de resto, explicar a relativamente discreta presença mediática de um dos mais interessantes álbuns da obra recente do grupo... A caminho vem ainda uma edição, com extras, de Daydream Nation (1988), pela Geffen Records. Restando saber se, a haver uma separação entre grupo e editora, a reedição se manterá na agenda das edições futuras...

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quinta-feira, outubro 26, 2006

O amor é tudo?

Este é, sem dúvida, 0 ano dos suecos. The Knife, Concretes, The Sounds, Shout Out Louds, I'm From Barcelona, Peter Bjorn and John... Isto para citar alguns entre os que mereceram franca exposição internacional. Pois aqui fica mais um nome para acrescentar ao rol. Chamam-se Love Is All, e apresentam este gélido, mas irresistível, Make Out, Fall Out, Make Out no seu álbum Nine Time The Same Song (mais uma descoberta, cortesia Planeta Pop, os amigos aqui do lado).



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Rufus Garland em Paris e Londres

O que parecia coisa para duas noites só, afinal ganhou novas vidas. Realizado em duas noites de sala cheia no Carnegie Hall, a 14 e 15 de Junho deste ano, um concerto unicamente centrado nas canções que Judy Garland ali apresentou em 1961 vai conhecer mais datas, para já em Londres e Paris. O rei da festa é Rufus Wainwright, que promete levar este concerto especial ao London Palladim a 18 de Fevereiro e, dois dias depois, ao Olympia de Paris... Resta saber se são datas únicas ou as primeiras de uma eventual série maior em salas europeias. Entretanto, o músico continua a trabalhar na gravação do seu quinto álbum de originais, com data de edição prevista para os primeiros meses de 2007. Não se sabe título nem há informação sobre o eventual single de avanço. Certa parece ser, por enquanto, a colaboração de Neil Tennant, dos Pet Shop Boys.

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Era uma vez uma cidade

Ao longo de mais de cem anos de cinema e não tantos de televisão, Roma foi alvo de inúmeras investidas no campo da ficção. Porém, salvo pontuais excepções, a Roma dos filmes e de algumas séries mais não era que uma visão, distante, livre e historicamente coxa da realidade. Frequentemente juntavam-se referências factuais, arquitectónicas ou sociais de várias épocas, fazendo-as coexistir, como amálgamas de notas soltas, num espaço ficcional onde a fantasia sistematicamente suplantava o real. Roma, a série da HBO co-produzida pela RAI e BBC que no início do ano foi presença semanal na 2:, não se aproxima em nada dos mecanismos do chamado docudrama. Porém, de todas as visões já experimentadas desta cidade que foi centro do mundo durante séculos, esta é a que mais justiça lhe presta, sem que tal tenha implicado cedências narrativas ou menor profundidade na construção de personagens, lugares e situações.
Sem favor (nem exagero), Roma é mais um exemplo de excelência na actual produção dramática para televisão. A sua primeira época (uma segunda e, diz-se, derradeira, anunciada para Janeiro de 2007) representou um dos mais cativantes e requintados exemplos de grande cuidado em todas as frentes. Com um sentido de verdade (tanto na face histórica como na construção de uma pulsão ficcional) que funciona como cereja sobre um bolo técnico de exigência superior.

Muito do sentido de “realismo” que Roma pretendeu chamar a si deve-se a uma correcta opção pela rodagem dos 12 episódios num conjunto de estúdios “reais” construídos na mítica Cinecittá. O digital serve-se, discreto, imperceptível, apenas como retoque, a verdade das paredes, do chão, dos grandes e pequenos espaços a fornecer à série uma noção de corpo físico que permite encenar, entre as suas ruas e praças, a vida agitada e socialmente complexa de uma cidade que então somava já alguns séculos de história. À rede de ruas e largos (o maior dos quais o fórum) erigidos na Cinecittá juntou-se, na exigente pré-produção, o trabalho igualmente preciso e cuidado de equipas que construíram adereços, guarda roupa, treinaram figurantes do corpo militar, sob a orientação de um consultor histórico que tentou manter tudo o mais próximo possível das verdades do tempo retratado. De resto, num dos documentários servidos como extra, Bruno Heller, o principal responsável pela ideia, gracejou, afirmando que, se, por uma vez, fosse fiel à verdade histórica da Roma de então, só por si haveria motivos suficientes para servir novidade aos espectadores. Assim foi.

A acção retratada nos 12 episódios da primeira série de Roma transporta-nos para um período de mudanças políticas e sociais. Estamos a viver a derrocada da velha República e a assistir a uma cadeia de eventos que desencadearão o nascimento do Império alguns anos depois.
Tudo começa em 52 a.C., quando Júlio César sai triunfante, apesar da enorme desvantagem numérica, na guerra da Gália, confirmando o sucesso da estratégia romana sobre a multidão gaulesa. Ao longo dos 12 episódios acompanhamos a degradação das boas relações entre os dois homens mais prestigiados de Roma, César e Pompeu, protagonistas de um triunvirato em 60 a.C. (com terceiro elemento em Crasso, ignorado nesta história). A queda de Pompeu e consequente vitória de Júlio César, a sua passagem pela Grécia e Egipto (aqui arbitrando uma disputa de poder entre os irmãos Ptolomeu XII e Cleópatra), e regresso triunfal a Roma, ocupam o coração da acção. Na recta final, inevitável, a conjura de opositores e morte, no ano 42 a.C, do homem que havia sido decretado ditador para toda a vida, crime promovido pela honra da república, mal imaginando os seus responsáveis que, de certa maneira, desferiram no corpo de César a estocada de morte no sistema que, 15 anos depois, desaparecia, dele descendendo directamente o novo poder que, gradualmente, seria transformado numa nova ordem imperial (monárquica, portanto), cabendo a Augusto (nome pelo qual passava a responder o jovem Octávio, sobrinho de Júlio César). O período conturbado entre a morte de César e a ascensão ao poder de Octávio, implicando a dada altura um segundo triunvirato deste, com Marco António e Lépido, e a derrota consequente destes últimos pelo primeiro, deverão constituir a medula que definirá o rumo dos episódios da segunda série, já em produção.

O que faz de Roma uma série narrativamente pujante, destacando-a de um patamar de mera reconstituição histórica, é o facto de não tomar os seus protagonistas “históricos” como estátuas ambulantes com texto a debitar, mas gente de carne e osso com uma dimensão privada que surge como inevitável complemento a uma vida pública, política ou meramente militar. Como peças do puzzle político que acompanhamos vemos figuras militares como Júlio César, Pompeu, Marco António e os senadores Cícero, Cato ou Brutus (filho adoptivo de César e autor do golpe de misericórdia que o mata). Como protagonistas plebeus transversais a toda a acção, conhecemos o centurião (e futuro senador) Lucius Vorenus e o legionário Titus Pullo, militares pontualmente referidos em textos reais de Júlio César, aqui recriados com total liberdade de ficção. Entre a ficção e traços de realidade entramos na vida familiar em torno de César e Pompeu, na qual circulam figuras como o então ainda muito jovem Octávio, a sua ambiciosa mãe Attia ou Sevillia, uma antiga amante do ditador. Contraponto a estas figuras da elite nobre, o agregado familiar de Voreuns, integralmente ficcionado, permite-nos um mergulho em paralelo pela vida quotidiana plebeia na Roma de há dois mil anos.

O desenrolar da acção entrecruza factos políticos e militares com histórias da vida privada. Evoca factos, revela hábitos e modos de vida, mas não deixa nunca de nos apresentar as profundezas das dúvidas, medos, alegrias, surpresas ou desencantos de um aglomerado de figuras com as quais, episódio a episódio, aprendemos a conviver. Com eles sentimos o gelo de jantares entre patrícios onde segundos sentidos se cheiram antes dos odores das comidas chegarem frente aos convidados, a omnipresença de um sistema religioso que não comportava em si um discurso moral, as cores dos eventos públicos, o buliço do fórum e dos mercados, os jogos de hierarquia, pequenas marcas do quotidiano. E, sem nunca perder segundos com panorâmicas, a movimentação das câmaras, sempre atentas a acções e figuras concretas, deleitamo-nos com uma soberba recriação da velha Roma. Sublinhe-se ainda, em jeito de nota final, a segurança com que uma série claramente nascida de um surto de interesse popular pela Roma antiga desencadeado pelo apenas mediano Gladiador, de Ridley Scott, guarda o único combate de gladiadores para o penúltimo episódio. E sem descuidar, uma vez mais, a verdade dos factos de um tempo em que a ideia de um Coliseu para ver semelhantes espectáculos ainda estava a décadas de acontecer.

PS. Versão longa de um texto originalmente publicado na revista 6ª, do Diário de Notícias

quarta-feira, outubro 25, 2006

Clássicos 00 - The Kills

Não só uma belíssima canção (a remistura de Tiga, então, é irresistível), mas também um fabuloso teledisco. Mais uma proposta de um realizador que assina, simplesmente, como Rojo. E que, no passado recente, nos deu já telediscos como Alsatian dos White Rose Movement, Walking With Thee dos Clinic ou Love And Destruction dos Ash. Sensibilidade indie apurada e evidente. Recordemos então este The Good Ones, dos The Kills. A canção está no álbum No Wow, de 2005.



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Best Of

E este ano o best of vai para... Rodrigo Leão!
Já?
Para quê?

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Os regressos! Os originais! Os regressos!

É como dar o dito pelo não dito. Há poucos meses, Frank Black anunciava que a tentativa de fazer novas canções no âmbito dos Pixies tinha sido um desastre que, assim sendo, continuariam a tocar os velhos temas (fundamentais peças da história indie rock, é bem verdade). O tal inédito que lançaram via iTunes era, de facto, um tropeção... Mas, convenhamos, os concertos foram de pura satisfação, tão sóbrios quanto os dos Bauhaus, que se limitaram a ressuscitar a sua memória, temendo o habitual desnorte criativo que já identificamos em muitas outras reuniões (Blondie, Culture Club, Duran Duran). Havendo, claro, excepções (Go Betweens, Wire). E vamos ver como corre a coisa com os The Who...
Agora Frank Black queixa-se de ter já tocado com os Pixies em todo o lado, sem nada de novo, sentindo-se como se fossem uma banda de feira de província... Vai disto, marcam estúdio para ensaios em Janeiro e anunciam possível novo álbum de originais em 2007. E também um novo best of em 2007... Ai, ai, pelo caminho o triplo acústico não tarda!...

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terça-feira, outubro 24, 2006

E o lobo vira pop...

Aperitivo para o álbum que vai editar em inícios de 2007, este single mostra um Patrick Wolk bem diferente do rapaz raro que nos deu já o bizarro, mas cativante, Lycantropy e o magnífico Wind In The Wires, onde ensaiava híbridos para folk e electrónicas. Accident & Emergency é ostensivamente pop... Lembra a demanda de sofisticação de algumas bandas em meados de 80 (terá andado a ouvir... e ver, os Visage?). E reencontra um desejo de satisfação numa canção de travo clássico. Estranha-se a princípio (sobretudo dada a memória recente de uma obra em destinos algo diferentes). Mas, depois, vamo-nos habituando...

Em paz com os Mystics?

Os Flaming Lips, cujo mais recente álbum (At War With The Mystics) representa uma das desilusões do ano, vão editar um novo EP a 13 de Novembro. O disco inclui dois temas do álbum deste ano, um intacto (It Overtakes Me, que de resto dá título ao EP) e Free Radicals, em versão remisturada. A estes juntam-se os inéditos Time Travel e Crazy In Tikrit...

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segunda-feira, outubro 23, 2006

Discos da semana, 23 de Outubro

Sérgio Godinho “Ligação Directa”
Seis anos depois de Lupa, o regresso aos originais dá-nos, bem focado, um dos melhores álbuns da obra recente de Sérgio Godinho. Tal como outros veteranos o fizeram nos últimos tempos (Bob Dylan, Neil Young, Paul McCartney, Brian Eno), também Sérgio Godinho encontrou novas forças e revitalizou a sua verve. Não que lhe tenha faltado alguma vez a ideia, o correcto e oportuno sentido de parceria, a música e palavras (Domingo No Mundo, de 1997, é um dos seus três melhores discos de sempre). Mas em Ligação Directa encontramos nova expressão consolidada de uma demanda por uma ligação ao tempo presente, precisamente tacteada nesse álbum de 97 e depois visivelmente ensaiada em Lupa (2000). Sólida, clara e capaz de conferir a um belo lote de canções um rosto presente, actuante, vivo e atento. Atente-se, contudo, que esta rara capacidade em viver em consonância com os desafios do presente não é apenas notícia de finais de 90. Todo o seu percurso se fez desta vontade em não ficar refém de um tempo, uma ideia, uma estética. Discos como Pano Crú (1977), Canto da Boca (1980) ou Na Vida Real (1986) são evidentes marcos de franco relacionamento com as revelações do “som” do tempo em que surgiram, o novo Ligação Directa fazendo o mesmo em relação ao presente. Não que se procurem aqui, como nesses outros discos, as modas em voga, as tendências da next big thing. Antes, um relacionamento de uma escrita, de identidade há muito firmada, com características do “som” presente (na produção, nos instrumentos convocados, na reunião de pistas de vários destinos que convergem aos vários arranjos, soberbos de resto). Tudo isto acontece, naturalmente, sobre um magnífico conjunto de canções, algumas sendo já candidatos a “futuros clássicos”, do magnífico Às Vezes o Amor a peças espantosamente salvas da memória (do memorável, mas esquecido) Portugal, Uma Comédia Musical como o são A Deusa do Amor e Só Neste País. Na essência, estão aqui as linhas estruturais da obra de Sérgio Godinho. Cantam-se amores, contam-se histórias, revelam-se personagens, mantém-se viva a alma crítica, respira-se cortante sentido de humor, em canções de carpintaria sempre aprumada. Não falta à chamada a representação de heranças da música popular portuguesa, a pop, respira-se sobriedade nas formas, ensaiam-se algumas novas ideias (como se escuta no Ás da Negação), apresenta-se até um sentido de encenação teatral (mais evidente em Só Neste País, entremeada de easy listening, quase à la Joe Dassin, com um sentido épico que aflora no refrão e promete fazer da expressão “só neste país é que se diz só neste país” mais um entre os muitos aforismos cantados que a obra de Sérgio Godinho soma desde os primeiros dias.

PJ Harvey “The Peel Sessions 1991-2004”
Admirada por John Peel, PJ Harvey gravou a sua primeira sessão para a BBC em 1991, antes mesmo de entrar em estúdio para registar o soberbo álbum de estreia, Dry. Os quatro temas dessa sessão abrem, plenos de força visceral, o alinhamento desta colecção que junta depois gravações de 1993, 1996, 2000 e 2004. Entre faixas dos álbuns em promoção, lados B e uma pérola que podemos encontrar num bootleg de 1996 e numa banda sonora (Naked Cousin), a força primordial da música de PJ Harvey aqui tem retrato sem maquilhagem. Sentem-se, evidentes, heranças da escola Patti Smith, semelhante também o seu permanente jogo de contrastes entre uma música de rugosidades claras mas de palavras meticulosamente escolhidas, palco de sentimentos extremos a quem voz e guitarra dão corpo. O efeito está nas proximidades do que em 1993 nos mostrou na nudez encantadora das suas 4-track Demos. As verdades primordiais expostas por uma obra que, na verdade, delas nunca se afastou.

Pet Shop Boys “Concrete”
Por uma noite só, a convite da BBC, os Pet Shop Boys juntaram-se num palco em Londres para transformar em realidade um sonho já ensaiado no sinfonismo de canções como It’s A Sin ou Left To My Own Devices. Com a BBC Symphony Orchestra, dirigida por Nick Ingman, contando com convidados como Rufus Wainwright (que transforma e assimila, espantosamente, Casanova In Hell), Robbie Williams (em Jealousy) ou Frances Barber (a protagonista do musical Closer To Heaven, em Friendly Fire), partem de um alinhamento dominado por canções do recente Essential e partilham a sua artilharia electrónica habitual com um sentido de encenação eloquente, novamente sob a direcção musical de Trevor Horn. Contra a vulgaridade de tantos outros discos ao vivo que pouco mais fazem que ser retrato de concertos que se limitam a recriar discos em palco, um registo consequente de uma noite diferente. De resto, ao cabo de mais de 20 anos de carreira, este é o primeiro disco ao vivo do grupo. Valeu a pena esperar pelo momento certo para o fazer.

Bright Eyes “Noise Floor (Rarities 1998-2005)”
Enquanto se espera por um novo capítulo na história musical de Connor Oberst, uma antologia de singles, versões, raridades e inéditos que nos permitem conhecer um pouco mais sobre o seu percurso (sobretudo em temas de uma etapa anterior a um activismo político que desviou entretanto muitas das suas preocupações noutro sentido). Entre gravações caseiras (umas em gravador de quatro pistas, outras directamente registadas no seu computador), um lote de 16 temas revela sobretudo a pulsão além-folk (sobretudo de costela indie rock) que sempre co-habitou na sua música e identidade. O lote apresentado é invulgarmente coeso e, salvo pontuais tiros ao lado, quase sugere a noção de indentidade que se deseja num álbum. I Will Be Grateful For This Day, editado na série Singles Club, da Sub Pop (em 2001) é espanto no estado puro. Em contrapartida, a faixa de abertura, Mirrors And Fevers, de um EP de 2000, é conjunto de sons sem Norte aparente. Já Blue Angels Air Show ou Weather Report são exemplos pop alternativa (de tempero folksy) de primeira água. Mais uma prova, afinal, de um talento a acompanhar e que, como nos mostrou em Digital Ash In A Digital Urn, não se esgota apenas na folk que tantos encómios na crítica tem angariado.

Também esta semana:
The Byrds (caixa), Robbie Williams, Mercury Rev (best of), Depeche Mode (3 reedições), Maximilian Hecker, Isobel Campbell, Badly Drawn Boy

Brevemente:
30 de Outubro: The Gift (ao vivo), Goldfrapp (remisturas), Agnés Jaoui, M Ward, Joana Amendoeira, Ann Pierlé, Aimee Mann, Marie Antoinette (BSO), Luna (best of), The Who
6 de Novembro: Mariza (ao vivo), The Matches, Kool & The Gang (antologia), Philip Glass (ópera e BSO The Illusionist), Moby (best of), Acorda (compilação em mp3)
13 de Novembro: Jarvis Cocker, Albert Hammond Jr

Novembro: Sam The Kid, Protocol, Goldfrapp (remisturas), Duran Duran (2 reedições), Clinic, Jay Jay Johansson, Humanos (ao vivo), Tom Waits, Sons & Daughters, Bryan Ferry, The KBC, Third Eye Foundation, JP Simões, U-Clic, Joseph K (antologia)


Estas datas provém de planos de lançamento de diversas editoras e podem ser alteradas a qualquer momento

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domingo, outubro 22, 2006

Gargalhada de Outono

Em domingo sombrio, servimos Bergman, à la French and Saunders... Uma das suas muitas paródias a grandes realizadores, esta não falha o alvo na acção, na fotografia, na música... Bergman não teria feito... diferente. Uma revisitação com passagem por O Sétimo Selo, Persona, Em Busca da Verdade e... Abba!

sábado, outubro 21, 2006

Marie & The Antoinettes

Ao fim de três obras, uma série de características começam a revelar-se como marcas autorais em Sofia Coppola. Se no plano estético parece definitivamente haver uma valorização da sugestão ambiental em detrimento de uma opção por maior complexidade narrativa (processo no qual a música desempenha papel de evidente relevância), na construção da história e personagens nota-se firme interesse por figuras e situações de choque cultural e alienação. Como as personagens de Scarlett Johansson ou Bill Murray em Lost In Translation, a Maria Antonieta (Kirsten Dunst) e o Luís XVI (Jason Schwartzman) do novo filme são inadaptados, involuntariamente arrumados num lugar e tempo que os predestinou a um fim que pressentimos trágico. Contudo, e tal como em Lost In Translation (e ao invés de As Virgens Suicidas), Sofia Coppola deixa esse destino trágico fora do ecrã. Porém, enquanto na frase sussurrada numa ruela de Tóquio, em jeito de despedida, nos deixa inquietos quanto ao desfecho de uma história evidentemente aberta (todavia de pouca luz ao fundo do túnel), os planos finais de Marie Antoniette, família real num coche rumo a Paris no despontar da revolução, guardam em nós as certezas de um fim que, mesmo não contado, a História há muito se encarregou de nos relatar. Trágico, sem dúvida, corolário de uma vida de decadência pessoal, social e política de que todo o filme é retrato "impressionista".

O interesse de Sofia Coppola por Maria Antonieta nasceu de uma conversa com um amigo sobre a biografia da rainha por Stefan Zweig. Cativou-a a leitura mais psicológica da jovem rainha, em claro confronto com os estereótipos muitas vezes veiculados noutras abordagens aos dias da Revolução Francesa. Encantou-a a descoberta da história, na dimensão pessoal, de uma adolescente, 15ª filha da imperatriz da Áustria, que abandona o lar para, aos 14 anos, ser estranha numa terra estranha, casando com o herdeiro do trono de Luís XV numa cerimónia poucos minutos depois da sua chegada a Versalhes. A abordagem de Zweig foi ponto de partida para a descoberta de uma outra biografia mais recente, por Lady Antonia Fraser, que aprofundou em si a curiosidade (e identificação) com as ansiedades de uma adolescente e pela forma como, ainda hoje, uma menina de liceu, aos poucos conquista o seu lugar, segurança e acaba por sair do casulo. A Maria Antonieta, revisionista, que resolveu trazer para o cinema não era apenas o símbolo do poder e de um estilo de vida em decadência. Era, antes, a história de vida de uma rapariga que, tal como o jovem marido, se viram no trono de França ainda adolescentes. Sem fazer a mínima ideia do que era governar...

Marie Antoniette não é um documentário. Nem pretende ser uma mera reconstituição histórica dos dias que mediaram a chegada da rainha a Versalhes e a partida, sob escolta popular, rumo a um destino incerto numa Paris sublevada pelos primeiros sinais de revolução. A mesma que decretaria a sua morte quatro anos depois. Sofia Coppola optou antes pela procura de motivos de interesse na vida privada da jovem rainha e, como nos filmes anteriores, faz questão de convidar o espectador a uma viagem virtual ao lugar onde decorre a acção. A autorização, inédita, para filmar em Versalhes, garante por si só uma verdade física que permite, depois, pequenas liberdades de pormenor (uma delas uma espantosa, mas discretíssima, presença de um par de ténis All Star num plano dominado por sapatos de época).
Desde os primeiros momentos de trabalho iniciado na produção do filme fez-se saber que a sua banda sonora seria essencialmente composta por canções... punk (e afins). Assim o foi, New Order, Adam & The Ants, Strokes, Siouxsie & The Banshees ou Bow Wow Wow a partilhar os mesmos corredores, salões e jardins que a música de Rameau e Domenico Scarlatti igualmente usada. A opção, discutível (e que esteticamente, a um primeiro visionamento, só parece fazer absoluto sentido numa cena de baile ao som de Hong Kong Garden e uma outra, de amor, com Kings Of The Wild Frontier), sublinha o carácter impressionista pretendido, vincando, ao lado do rigor nos espaços, roupas, gestos e pequenos objectos, leituras que projectam eventuais afinidades com o tempo presente.

A princesa e, depois, rainha, de Sofia Coppola, é jovem menina deslocada, de horas feitas entre inocência e aborrecimento palaciano. O retrato, fiel ao olhar de Lady Antonia Fraser mostra o choque gélido entre uma adolescente de hábitos diferentes e a ritualidade teatral de Versalhes. O indigno levantar e vestir sob orientação de senhoras da nobreza que lhe invadiam o quarto, o desinteresse pouco comunicativo de um marido com interesses bem longe da jovem esposa, o baile sem música das tardes de passeios, olhares e poucas palavras entre salões do palácio.
Sem a necessidade de injectar um escusado texto de abertura, uma voz off explicativa, ou mesmo diálogos escusados, limitando-nos antes a jogos de olhar sobre cenas da vida de uma corte onde nada acontecia além desta vida ritualizada, com figuras para quem uma nova cabeleira ou vestido eram a profundidade possível, o filme deixa-nos contudo seguir a discreta, mas evidente, mudança de tons. A não consumação do casamento, que durante sete anos deu azo a más-línguas, é acompanhada pelo progressivo distanciamento da rainha para um mundo paralelo de festas pela noite dentro entre o andar superior do palácio e o Petit Trianon, jogo, bailes, gastos atrás de gastos. O nascimento da primeira filha, depois do Delfim, mudam gradualmente a mulher que toma a educação dos filhos como prioridade, abandona as indumentárias vistosas e se refugia num conjunto de casas rurais de madeira nos jardins de Versalhes (o chamado Hammeau de La Reine).

Marie Antoinette conta muito dizendo pouco. Expõe vidas onde a moldura supera a pintura, num mundo deslocado do real. Teatral. Dourado. Mas ostensivamente decadente, alienado, anunciando colapso evidente. Não se presenciam episódios como o famoso “caso do colar” ou a realização dos Estados Gerais em 1789, os únicos momentos concretos retratados na passagem da fronteira da princesa, o seu casamento, a morte de Luís XV e a invasão de Versallhes pela multidão. O texto aqui mora no contexto. As personagens são figurantes num mundo onde apenas ao rei e rainha era dado um papel. A história, que alguma crítica diz não existir, lê-se discretamente nas entrelinhas, adivinha-se nas subtis mudanças. Tal e qual dela tomaria consciência um residente em Versalhes entre 1770 e 1789. A verdade histórica não é evitada. Mas mais que fazer um docu-drama para o Canal História, Sofia Coppola optou antes por mostrá-la do ponto de vista de uma adolescente que é mera espectadora de um mundo cujo destino não está nas suas mãos. Uma vida de prisão dourada, antes de uma outra, mais lúgubre , que, anos depois, lhe serviria, vexada e caluniada, de última morada numa cela da Conciergerie.




PS. Este texto foi publicado na revista 6ª, do Diário de Notícias


sexta-feira, outubro 20, 2006

Para acabar com o cinema *

O espaço de discussão do cinema por-tuguês está afogado em lugares-comuns que tentam boicotar qualquer reflexão inteligente sobre os seus problemas. Um dos mais agressivos é o que impõe uma clivagem absoluta entre números do mercado e pensamento crítico: os filmes "populares" seriam os que a "crítica" menospreza.
Para começar, convém relembrar que a "crítica" pode ser muito discutível, mas não existe como rebanho — melhor ou pior, cada crítico produz uma opinião que não se dissolve num caldeirão de generalidades. Ora, face a um objecto português como Filme da Treta, de José Sacramento, tão (legitimamente) empenhado em conseguir muitos espectadores, importa repetir uma outra verdade básica. A saber: que a especificidade crítica ignora — sublinho: ignora — as performances financeiras. Não se escreve para "acrescentar" ou "roubar" espectadores a um filme, mas para o pensar. Que haja quem menospreze a simples possibilidade de tal pensamento existir, eis o que não pode minimizar a importância vital do exercício das opiniões — face ao cinema ou a qualquer outra forma de expressão artística.
Ora, o que é triste e penoso em Filme da Treta é a sua estranheza a qualquer desejo cinematográfico. Retomando as personagens de Conversa da Treta — Zezé e Toni (José Pedro Gomes e António Feio) —, o filme limita-se a uma colagem grosseira de sketches que, além do mais, perderam as suas raízes. Mal ou bem, as conversas originais eram um simples diálogo que vivia de caricaturas e trocadilhos mais ou menos inspirados. Agora, tudo desliza para a facilidade portuguesa da stand-up comedy que, desgraçadamente, esquececeu os modelos inspiradores (de Woody Allen a Seinfeld), esgotando-se na proliferação automática de anedotas mais ou menos escatológicas.
Filme da Treta é menos um produto de cinema e mais um sintoma do triunfo dos valores televisivos sobre o audiovisual português. Claro que a televisão pode ter um papel importantíssimo a desempenhar na vida do cinema. Mas o espírito televisivo que se exprime em Filme da Treta é o da academização rotineira do humor e da banalização formal de todas as narrativas. Um dia destes, teremos grandes mecanismos de apoio ao cinema e, nas salas, apenas sucedâneos banais da televisão.
* Texto publicado hoje, na revista "6ª", do Diário de Notícias.

Pequenos delírios domésticos

Quatro anos depois da espantosa estreia em L.I.E. (uma das melhores primeiras obras da presente década), somando entretanto a realização de alguns episódios da série Sete Palmos de Terra, e tendo recentemente assinado outros, para Dexter, Michael Cuesta apresenta em Aos 12 e Tantos (Twelve and Holding, no original) mais um olhar intenso sobre os universos da adolescência e das mudanças e ritos de passagem que comporta.
A história é simples e linear. De uma vingança de uma quezília light com final trágico (e não imaginado) entre grupos de adolescentes resulta a morte de um de dois irmãos gémeos. Sobrevive Jacob, o mais tímido, com ostensiva falta de amor próprio (sobretudo alimentada pelo estatuto predilecto do falecido irmão), e que frequentemente esconde uma mancha congénita na face com uma máscara. Juntamente com dois amigos da mesma idade, o obeso Leonard (que, na sequência do mesmo acidente, perde o paladar e ganha a consciência do seu peso, decretando a si mesmo uma dieta de maçãs, maçãs e nada mais que maçãs) e Malee (que se apaixona por um paciente da sua mãe, psicóloga, que descobre a trabalhar numa obra no preciso local onde o irmão de Jacob morreu), vemos de perto acontecimentos num período de poucos meses e muitas mudanças. Todos têm 12 anos, mostrando-nos o filme como as mutações nos seus comportamentos correspondem a rotas de descontrolo emocional, amplificadas ainda mais pela disfuncionalidade da vida familiar de cada um (e, aqui, as mais directas ligações com aquela que era, na essência, a temática nuclear de L.I.E.).
Uma vez mais sem nos forçar a um quadro moral (nem mesmo quando projecta pulsões de vingança no pequeno Jacob, em grande parte vindas de palavras magoadas da sua mãe), Michael Cuesta exibe uma invulgar capacidade no retrato do universo adolescente da América actual. Mas sublinha, pelas personagens e sua história, a vontade em manter sobretudo viva a vontade em observar como se comporta, no contexto social actual, a entidade família perante um período de complexas mudanças pelas quais passam os filhos num tempo em que expressam o seu luto pela infância e entram na adolescência. Aos 12 e Tantos não respira nunca a intensidade de L.I.E., talvez por diluir a sua (e nossa) atenção por uma série de personagens em simultâneo. Mas não deixa de ser uma segura continuação de uma obra que promete muito.


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Os dias de Syd

Mais um livro sobre os Pink Floyd, este todavia apenas centrado na etapa inicial da vida do grupo, precisamente aquela que contou com Syd Barrett como a sua força criativa principal. Pink Floyd: The Early Years, de Barry Miles (Omnibus Press) é um olhar atento, em 128 páginas, pelos primeiros tempos, focando as origens de cada elemento do grupo, de como se juntaram e nasceu música. Apesar de essencialmente centrado em volta de Syd Barrett, o relato procura ainda explicar como a mais excitante banda do underground londrino de 1966/67 se transformou no colosso de sucesso mundial, poucos anos depois.

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quinta-feira, outubro 19, 2006

Meet the Klaxons

Muito se tem falado dos Klaxons nos últimos meses (sobretudo nas páginas, reais e virtuais, do NME). São londrinos, cruzam heranças pós-punk com uma pulsão rítmica que lembra alguma música de dança de inícios de 90, cultivam uma imagem com o mesmo afinco de uns Adam & The Ants... O NME trata-os como new rave, com o já habitual exagero de quem quer encontrar a next big thing, banda ou movimento, a cada novo mês. Mas não deixa de ser curiosa a sua construção de descargas de intensidade dançável, sem evitar a estrutura da canção. Uns DFA 1979, em pop... Mais coisa, menos coisa... Este é o teledisco de Magick, o seu novo single.


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Dean e Britta e as versões

Dean Wareham e Britta Philips, dois ex-Luna (banda em revisão num belíssimo best of a editar este mês) preparam-se para lançar mais um álbum de parceira, previsto apenas para Janeiro de 2007. Antes, um EP no qual se destapa o véu sobre o que aí vem no inédito Words You Used To Say, tema ao qual se juntam quatro versões. São elas Colours (de Donovan), Distractions Pt 1 (Bobby Darin), Since I Lay My Burden Down (Michael Holland) e We’re Not Supposed To Be Lovers (Al Green).

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quarta-feira, outubro 18, 2006

Nova Iorque, cidade rock'n'roll (6)

A terminar esta série de posts nos quais se fez um percurso entre a memória, os discos e as ruas de Nova Iorque, um guia prático, rock'n'roll claro, de visita à cidade.

PALCOS
Radio City Music Hall. NaRua 50, cruzamento com a 6ª Av. Sala art déco com frequente programação pop/rock e espectáculos de dança.
Carnegie Hall. 881, 7ª Avenida. Sala habitualmente mais dada à música clássica, world music e jazz, recebe por vezes alguns consagrados pop/rock.
Apollo Theater. 253 West 125 St. Em pleno Harlem, casa veterana para nomes dos blues , soul e R&B .
Beacon Theater. 2124 Broadway, na rua 74. Sala habitualmente ocupada com nomes pop/rock e soul .
Roxy. 515 West 18 St, entre as avenidas 10 e 11. Programação frequentemente com nomes de música alternativa.
Madison Square Garden. Na 7ª Av, com a rua 33, sobre a Penn Station, é o pavilhão clássico para grandes concertos.
Roseland. 239, West 53 St, entre a Broadway e a 8ª Av. Uma velha sala de baile há muito desviada para concertos rock nas noites de semana.
Shea Stadium. Na rua 126, com a Rosevelt Av, em Queens. Tradicional palco de grandes concertos desde os dias dos Beatles.

CLUBES
Bitter End. 147, Bleecker St, perto de McDougal St. Meca obrigatória nos dia s da geração folk de 60, ainda mantém actividade regular.
CBGB. A maternidade do punk nova-iorquino, ali mora até ao fim do mês, num rés do chão do nº 315 da Bowery, perto da East Houston St.
CB's 313 Gallery. Na porta ao lado do CBGB, número 313. Apesar de apresentar alguns espectáculos musicais, é também uma galeria de artes plásticas e tem bar aberto durante a tarde e noite. Aqui se vende até dia 31 o merchandise CBGB. A partir de 1 de Novembro abre o CBGB Fashions, na Broadway (esquina com a Bond St).
ACME Underground. 9 Great Jones St, perto de Lafayette St. Pequeno clube numa cave com programação essencialmente indie .
Bottom Line. 15, West 4 St. Clube com ares de cabaret com programação rock e jazz e uma história de mais de 25 anos.
The Knitting Factory. 74, Leonard St, entre a Broadway e Church St. Um dos mais activos clubes para músicas de vanguarda, jazz e bandas indie .
Mercury Lounge. 217, East Houston St, com a Avenue A. Célebre pela boa acústica e por uma programação que procura sempre estar na linha da frente das músicas alternativas. Muitos dos grandes da nova geração foram aqui descobertos.
Max's Kansas City. 240 West 52 St. Foi lugar histórico na génese do punk , rival mesmo do CBGB, quando era um dos raros espaços rock'n'roll na zona selecta de Park Avenue.
Gaslight. 400, West 14 St, perto da 9ª Av. Clube reconhecido pela sua oferta folk nos dias de 60. Bob Dylan tocou ali várias vezes na sua juventude.
The Living Room. 84, Stanton St, perto de Allen St. Clube na moda, sobretudo para concertos acústicos.
Sin-é. 150 Attorney St, perto de Houston St e Stanton St. Era um pequeno bar muitas vezes com banda sonora irlandesa até que Jeff Buckley o transformou em lugar de visita para uma nova geração de melómanos rock'n'roll .

O excelente site do Village Voice, em www.villagevoice.com tem uma lista completa dos clubes activos, com a programação para a semana em questão.

LOCAIS DE INTERESSE
Washington Square. No coração do Greenwich Village, albergou free sessions que catalisaram a explosão folk e rock de 60. Num canto há mesas de xadrez. Aqui teve lugar o grande concerto em defesa do CBGB, a 31 de Agosto de 2005.
Le Figaro Cafe. 184 Bleeker St, esquina com McDougal St. Café histórico nos dias da geração beat e dos cantores folk . Ginsberg fez aqui leituras. Hoje come-se um belo cheese steak.
Brill Building. 1617 Broadway, junto da rua 49. O edifício de escritórios de criação e escrita de canções que fez história nos anos 50 e 60, albergando alguns dos maiores autores da cidade. Ao lado encontra-se a histórica Colony Music, loja de partituras.
Studio 54. 254 West 52 St. Hoje desactivado, usado como espaço para eventos particulares, foi a sede do hedonismo disco sound para clientela mais in .
Chelsea Hotel. 222 West 23 St, entre a 7ª e 8ª avenidas. Um dos mais históricos dormitórios rock'n'roll . Hotel decadente num edifício enorme, quadros de antigos hóspedes no hall , recepção à antiga. Ali viveram muitos, os mais falados dos quais o casal Sid Vicious/Nancy. Rufus Wainwright por ali viveu quando chegou à cidade.
Dom Theatre. 23 St Mark's Place, na rua 8 entre Lafayette St e Avenue A. O edifício não existe mais, mas decorriam aqui os eventos Exploding Plastic Inevitable de Andy Warhol.
Jardim das Estátuas. No MoMA (Museum Of Modern Art, de resto o melhor museu de arte contemporânea da cidade), no nº 11 da West 53 St, entre a 5ª e 6ª avenidas. O lugar albergou importantes concertos, sobretudo de figuras de vanguarda como Laurie Anderson, Philip Glass ou Steve Reich.
Dakota Building. 1 West 72 St, frente ao Central Park. Prédio de apartamentos de luxo onde viveu e foi assassinado John Lennon. No Central Park, do outro lado da rua, uma zona ajardinada foi baptizada como Strawberry Fields e tem um monumento de homenagem ao ex-Beatle. Yoko Ono ainda ali reside. Para ver a anterior casa de Lennon, aquela onde habitou logo que chegou a Nova Iorque, nada como ir ao nº 105 de Bank St. Nela morou, depois, Joe Butler dos Lovin' Spoonful.
Casa de Bob Dylan. 92-94 McDougal St, perto de Bleeker St. A histórica residência quando Dylan, em meados de 60, viveu no Village, antes de se mudar para o Norte da cidade. Era aqui que hippies acampavam à sua porta (o que, no livro Chronicles , confessou agora, o irritava).

CDS E DVDS
Tower Records. Antiga loja de referência, tem hoje um catálogo pouco aberto a manifestações alternativas. Mesmo assim boas novidades, bom fundo de catálogo. Lojas na Broadway (nº 692) no cruzamento com a rua 4 e na cave da Trump Tower (mais pequena e de muito reduzida oferta), na 5ª Av. com a rua 57.
Tower Video. 20, East 4 St, entre a Broadway e Lafayette St, e precisamente nas traseiras da Tower Records, a melhor oferta de DVDs da cidade. Tem tudo, do cinema de ficção aos documentários, cinematografias independentes e música. Boa selecção de revistas de cinema e música.
Virgin Megastore. As duas lojas da Virgin são hoje as maiores megastores de Nova Iorque, com versátil oferta em todas as áreas (DVD inclusive) e com algumas importações europeias. Lojas na Union Square, no cruzamento com a Broadway e rua 14 (nº 52) e na Broadway (nº 1540), em Times Square, entre as ruas 46 e 47.
Other Music. A melhor loja para novidades (e algum fundo de catálogo) de pop/rock alternativo e música electrónica da cidade. 15, East 4 St. junto à Broadway, frente à Tower Video. À porta há uma montra com flyers para todos os concertos e eventos com bandas alternativas na semana em questão.
Whithney Museum. 945 Madison Av, junto da rua 75. A loja, à entrada do museu, tem uma pequena, mas boa selecção de CDs de músicas mais alternativas, de Philip Glass aos Tortoise, de Meredith Monk a Antony & The Johnsons. Na colecção do museu consta a foto de Peter Hujar que Antony usou na capa de I'm A Bird Now .
Barnes & Noble. Aqui nem CDs nem DVDs! Esta é uma das melhores cadeias de livrarias da cidade, com belas secções sobre música nas lojas no nº 600 da 5ª Av. (paragem obrigatória, com três andares repletos de livros) e na sucursal no Village, no cruzamento a rua 8 com a 6ª Av.(onde quase diariamente há pequenas tertúlias e encontros culturais).


VINIL DE COLECÇÃO
Rebel Rebel. Na Bleeker St, junto a Grove St, um paraíso de vinil pop/rock, revistas antigas (Mojo, Uncut, Face e afins) e livros, com particular presença de títulos britânicos de 70 a 90 e, como o nome da loja indica, tudo sobre David Bowie. Tem também CDs de novidades bem seleccionadas. Nada de Britneys!
House Of Oldies. 35, Carmine St, junto da 7ª Av, uma pequena loja especializada em singles e LPs descatalogados. Dono simpático e conversador.
Bleeker Bob's Golden Oldies Record Shop. 118 W 3rd, junto de McDougal St. A tipica loja para melómenos coleccionadores pop/rock. Um mundo de velharias ao monte, todavia bem separadas por áreas e géneros. Boa selecção de LPs, máxi-singles. Vende também CDs usados e revistas antigas.
Bleeker St Records. 239, Bleeker St, perto de Carmine St. Limpa e bem arrumada, uma boa selecção de CD e vinil cobrindo áreas do rock ao punk, dos blues à folk.
Vinylmania. 60, Carmine St, perto de Bedford St. Loja essencialmente dedicada a DJs, apresentando ainda boas selecções de hip hop clássico, funk e de tendências diversas de dance music.
Generation Records. 210, Thompson St, entre Bleeker St e a 3ª Av. O andar superior apresenta uma selecção de sons hardcore. O andar inferior propõe vinil de colecção em várias áreas.
Academy Records. 12, W 18th St, entre a 5ª e a 6ª Av. Outra loja no número 77 da E 10th, entre a 3ª e 4ª Av. Especializada em discos usados de música clássica, jazz e bandas sonoras.
Mondo Kim. 6, St. Marks Pl. Uma selecção de tudo o que possa parecere bizarro em CD, DVD e vídeo.
13. 13, St Marks Pl. Oferta para coleccionadores nas áreas de rock, metal, country, blues, jazz e folk.
Wowsville. 125, 2ª Av. Loja especializada em discos da colheita psicadélica de 60, também com boas selecções de punk nova iorquino da geração Ramones e psychobilly.

Há muitas mais lojas de velharias em segunda mão, sobretudo no Greenwich Village e East Village, mas estas são as mais bem apetrechadas para gostos pop/rock. Uma lista completa de lojas, com endereços e contactos pode ser consultada aqui.

Ao chegar a Nova Iorque convém comprar a revista Time Out local, guia completo de todas as actividades culturais da semana, das artes plásticas à dança, dos teatros ao cinema, da música aos eventos literários. Inclui programação completa de espectáculos e morada e contactos de todas as salas. Programação completa também de cinema (para gostos apurados, verificar o que passa em cinemas do Village como o Angelika Film Center, Film Forum, Cinema Village ou o novo IFC). Para uma visão crítica da oferta cultural da cidade, nada também como a consulta do excelente suplemento Choices do jornal semanário Village Voice. É gratuito e o melhor de Nova Iorque. ´

A selecção apresentada neste "guia" visa, como o título do post deixa claro, sobretudo, a vivência rock'n'roll da cidade. O retrato musical completo pede também uma visita a clubes de jazz como o Blue Note (131 West 3 St, perto da 6ª Av), o Birdland (315 West 44 St, entre a 8ª e 9ª avenidas) ou o Village Vanguard (178 7 Av South, perto da rua 11). O roteiro "clássica" é também vasto, centrado em determinadas salas de referência como o Carnegie Hall, a Igreja de St. Ann (157 Montague St, em Brooklyn), o Lincoln Center (na Columbus Av, perto da rua 65) ou o Town Hall (123 West 43 St, entre a 6ª Av e a Broadway). Há frequentemente concertos de música clássica no Central Park. Para ver espectáculos musicais na Broadway nada como marcar bilhetes com bastante antecedência. Os poucos lugares vagos para cada espectáculo no próprio dia (ou semana anterior) vendem-se a preços absolutamente dolorosos!

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terça-feira, outubro 17, 2006

Barato, mas eficaz.

Mais uma prova de que, apesar da importância fulcral das acções desencadeadas no actual contexto, The Information não são apenas zeros e uns para reflectir em "ciberculturês", mas antes um dos melhores discos de Beck. Cell Phons's Dead é uma canção com sabor a clássico imediato, com ordem para edição em single quando, na verdade, cada um já se encarregou de escolher o seu, graças aos clips já lançados no YouTube. Este, mesmo assim, acabou eleito como o "primeiro teledisco oficial" do novo álbum. Low budget, como os outros. Mas tremendamente eficaz.

Pavement em reedição rechonchuda

Os Pavement vão reeditar Wowee Zowee a 4 de Dezembro, num formato alargado, com um total de 50 faixas, 18 das quais inéditas. A reedição, que surgirá no mercado como Wowee Zowee – Sordid Sentinals, incluirá, além de todo o álbum (devidamente remasterizado) temas gravados em sessões para a BBC entre outras faixas ao vivo inéditas, outtakes também inéditos, nove temas originalmente lançados como lados B e quatro expressamente gravados para compilações, tributos e bandas sonoras. Não se podia fazer o mesmo para o restante catálogo dos Pavement?

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O concerto do ano!

Como é possível fazer tanto com tão pouco? Um violino, um sampler (com pedais), um teclado, um retroprojector (sim, daqueles que usávamos em Biologia para ver as explicações da fotossíntese). Um músico. E uma “cineasta” que, sobre o retroprojector, com nada mais que transparências e pontuais jogos de sombras, fazia “filmes” ao vivo, um a cada nova canção.
Se em Agosto o concerto no Sudoeste tinha já sabido ao que de melhor se tinha visto e ouvido em palco este ano entre nós, Owen Pallett superou-se a si mesmo e deu-nos “o concerto do ano” em noite de casa quase cheia no Clube Lua. É certo que a contaminação da música pelas imagens tem o seu peso na construção de uma noite com tamanha capacidade de sedução. Os desenhos, oportunos ou inesperados, são ilustração inteligente e cativante, ora sugerindo palavras ou formas, ora contando mesmo histórias. Se há denominador comum a Owen e à sua convidada em palco, a palavra criatividade lê-se na primeira linha. Sensibilidade, logo a seguir.
Mas nem só da soberba ideia visual vive este concerto. Por um lado é sempre cativante ver a construção, ao vivo, dos loops e da forma como acabam sobrepostos e integrados na canção que nasce frente aos nossos olhos. Por outro, os novos arranjos que faz questão de apresentar, mostrando que as suas canções são entidades vivas de que o disco foi apenas retrato num instante, impedem o tédio que muitas vezes se instala em tantos outros concertos. Entre os arranjos, depois, discretas ou evidentes citações, como as que fez a ABC Auto-Industry dos OMD, a Gershwin ou duas ostensivas vénias ao conceito de phasing de Steve Reich. Se a isto somarmos uma espantosa versão para An Actors Revenge, dos Destroyer não temos senão motivos para aqui reconhecer o melhor concerto de 2006. Que volte!

Foto Diana Quintela

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Nova Iorque, cidade rock'n'roll (5)

Nos anos 90, sob as presenças tutelares dos Sonic Youth e Lou Reed, uma multidão de bandas fez da cidade um pólo de invenção, todavia sem armas mediáticas para combater as Mecas do momento, divididas entre Seattle, Los Angeles, Manchester e Bristol. De facto, entre 80 e 90 o grande protagonismo musical de Nova Iorque deveu-se mais ao crescimento e progressiva visibilidade do hip hop, inscrevendo na história nomes de referência como Sugarhill Gang, Afrika Bambaataa, Run-Dmc, Public Enemy, De La Soul ou os Beastie Boys, praticantes de estimulante híbrido entre este novo género e heranças visíveis da cultura rock’n’roll.
Com novos clubes como o Knitting Factory ou o Mercury Lounge a cativar quem procurava a novidade, Nova Iorque viu nascer, ou serviu de nova casa a bandas como os Yo La Tengo, They Might Be Giants, Versus ou Living Colour, Jon Spencer Blues Explosion ou os Feelies. Entre as muitas forças reveladas em 90 destaca-se a multidão de projectos liderados pelo profícuo Stephin Merritt, das quais os Magnetic Fields representam o esforço protagonista. Depois de duas décadas de actividade regular, mas sem a capacidade para inscrever a cidade na primeira linha das atenções pop/rock mundiais, a chegada do milénio trouxe boas novas. Primeiro com o rock melodista e retro dos Strokes, banda nascida num colégio fino de Central Park West. O sucesso e oportunidade daquele som evocativo das melhores memórias de meados e finais de 70 foi tal que, num ápice, começaram a brotar outros nomes, com a consequente atenção desperta entre editores e promotores. Nomes como os Liars, Yeah Yeah Yeahs ou The Rapture revelaram-se inteligentes recontextualizadores de memórias punk. Interpol, Radio 4 e, mais recentemente, os Tha Bravery, redescobrem memórias da pop de inícios de 90 e injectam-nas em canções para energia, ritmo e guitarras. Igualmente recente, também manifestando sinais de ligação ao passado pela reinvenção de um hedonismo nocturno, juntando-lhe aprumo visual e tempero electrónico a olhar para as raízes de 80, o electroclash ofuscou as noites nova iorquinas de 2000 a 2003, projectando descendência em nomes como os Fischerspooner (mais canónicos) e Scissor Sisters (já em rumo a outras paragens). A actual deificação da DFA Records (LCD Soudsystem, The Juan McLean) como uma das mais activas e prospectivas editoras do momento, inventando híbridos de génese electrónica mas cientes de 50 anos de vivência rock’n’roll reafirma, uma vez mais, Nova Iorque como uma das mais importantes capitais musicais que o mundo hoje conhece. Esta é, de facto, a cidade que nunca dorme. (conclui amanhã)

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segunda-feira, outubro 16, 2006

Discos da semana, 16 de Outubro

Cansei de Ser Sexy “Cansei de Ser Sexy”
Apesar da concentração de atenções mediáticas (lá e cá) perante outros destinos musicais, factos e figuras nascidas entre as muitas cenas underground brasileiras por vezes furam o pano e revelam-nos verdadeiras surpresas que fogem às bitolas do gosto instituído. E por todas as razões celebremos a chegada ao mundo das Cansei de Ser Sexy. Porque dão visibilidade, na hora certa, a mais uma manifestação de saudável rebeldia com código postal de São Paulo. Porque, com mais sorte que bandas como Fellini, Gang 90 ou Harry (colheita pós-punk de 80), saltaram em tempo de vida as fronteiras da atenção local e entraram nos circuitos internacionais. Porque não precisam mais do rótulo “Brasil” para chamar atenções, a sua música hoje colocada junto dos Ladytron em cartazes de concerto, a identidade musical e não a lógica do "habitual" exótico tropical a falar por si. Porque, mais e melhor que tantos outros cultores de referências comuns (dos White Rose Movement aos Every Move A Picture, dos Boy Kill Boy aos The Sounds), encontraram uma forma mais vincada de expressar personalidade demarcada acima da mera citação de ilustres heranças. Mais pop que as Chicks On Speed, cruzam guitarras, electrónicas e sentido de urgência. A canção é forte e dançável. O desafio ao corpo, inevitável (pontuais temperos funk a reforçar o dominante viço rock’n’roll). Há atitude (que quando aflora o português lembra euforia teen da velha Blitz). E grandes canções... Pena apenas que a versão internacional tenha deixado de lado Superafim ou Acho Um Pouco Bom, as melhores propostas do disco, na versão original.

Beck “The Information”
O contexto (a estreia das canções no YouTube, a capa na Wired, a nova forma de construção de albums na idade do download) fez de The Information um polo inevitável para relexões sobre o estado da nação tecnológica musical e alvo das justificadas atenções de espaços ligados à cibercultura. Porém, por trás de todo este mundo de zeros e uns, há música. E que nos dá um dos melhores albums da carreira de Beck. Mais que em Guero (onde não parecia aconterer mais que um episódio de síntese e catalogação de ideias já apresentadas), The Information promove reencontros com velhos destinos, projectando-os em novas direcções. Hip hop e folk são tijolos certos numa construção onde a canção é invariavelmente a meta, nunca forçada a um denominador comum. Sente-se um desejo de regresso ao ferro velho de sons do qual em tempos fez nascer híbridos estimulantes, todavia longe da pulsão visceral de Odelay ou do viço funk de Midnite Vultures. No fim reconfirma-se, sobretudo, o enorme talento do songwriter, assim como a visão de um encenador inspirado (que uma vez mais agradece à produção de Nigel Godrich).

Vários “Plague Songs”
Há um ano, a organização britânica Artangel desafiou dez músicos, pedindo-lhes que criassem, cada qual, uma canção baseada numa das pragas bíblicas rogadas ao Egipto, relatadas no Êxodo, através das quais se tentou convencer o Faraó a libertar os escravos israelitas. A ideia começou por ganhar forma em Exodus, um concerto apresentado em Margate. E agora tem conclusão natural na gravação e edição de um disco com as canções encomendadas. O resultado mostra de tudo, algumas das partes claramente destacadas sobre a soma de um todo apenas mediano. Pérola das pérolas no alinhamento do disco, a leitura da praga da escuridão por Scott Walker em Darkness transporta-nos para uma dimensão sombria, negra de facto, formas menos abstractas que as expostas no recente álbum The Drift num espaço todavia ainda sem noção exacta de corpo. Entre as melhores leituras das dez pragas contam-se The Meaning Of Lice, por Stephin Merritt (pop “com piolhos”, em registo não distante do que escutamos no novo álbum dos Gothic Archies); Flies, texturalmente cativante sob orientação plástica de Brian Eno e Robert Wyatt (numa canção com sonoplastia consequente, sugerindo voo de repelentes insectos); The Fifth Plague (a da pestilência e consequente morte de gado) por Laurie Anderson e ainda o simples, belo, Katonah, de Rufus Wainwright (num registo acústico, americano profundo, a lembrar The Maker Makes), sobre a décima e derradeira praga, a da morte dos primogénitos. Sem cativar nem incomodar, Imogen Heap (metade do duo britânico Frou Frou) faz da praga dos gafanhotos uma banal pop para FM generalista, Cody Chesnutt traz Soul pouco estimulante a Boils, King Creosote canta sapos sem convicção em Relate The Tale, os Tiger Lillies adormecem qualquer alma hiperactiva em Hailstones. Elo mais fraco, o hip hop de trazer por casa à la Klashnekoff, ainda por cima como faixa de abertura, nada faz pela saúde do disco.

Electronic “Get The Message”
A história não podia ter começado melhor. Getting Away With It, com a colaboração vocal de Neil Tennant, era perfeita apresentação para uma ideia pop juntando Bernard Sumner (New Order) e Johnny Marr (ex-Smiths) e a sua vontade em fugir aos cânones do meio. Seguiu-se um seguro álbum de estreia, pop de primeira água, inteligente, actual, eficaz. Ainda mais um single, Disapointed, novamente com Neil Tennant. E depois a asneira, ribanceira abaixo, em mais dois álbums onde a inspiração do primeiro não morava. Agora, em jeito de balanço, um best of nutritivamente débil, com telediscos num DVD de extras, mas retratando a realidade de uma banda que não deu forma às promessas com as quais se apresentou em 1989

Também esta semana: Osvaldo Golijov (ópera), Mercury Rev (best of), Chuck E Weiss, Yo La Tengo, Jesus & Mary Chain (reedição)

Brevemente:
23 de Outubro: PJ Harvey, Sérgio Godinho, The Byrds (caixa), Pet Shop Boys (ao vivo), Robbie Williams, Bright Eyes (raridades), Luna (best of), Acorda (compilação em mp3), Mercury Rev (best of), Depeche Mode (3 reedições), Maximilian Hecker, Isobel Campbell
30 de Outubro: The Gift (ao vivo), Goldfrapp (remisturas), Agnés Jaoui, M Ward, Joana Amendoeira, Ann Pierlé, Aimee Mann, Marie Antoinette (BSO)
6 de Novembro: Mariza (ao vivo), The Matches, Kool & The Gang (antologia), Philip Glass (ópera e BSO The Illusionist)

Novembro: Sam The Kid, Protocol, Goldfrapp (remisturas), Duran Duran (2 reedições), Clinic, Jay Jay Johansson, Humanos (ao vivo), Tom Waits, Moby (best of), Jarvis Cocker, Sons & Daughters, Bryan Ferry, The KBC, Third Eye Foundation, JP Simões, U-Clic, Joseph K (antologia), The Who

Estas datas provém de planos de lançamento de diversas editoras e podem ser alteradas a qualquer momento

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domingo, outubro 15, 2006

Discos Voadores, 14 de Outubro

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O último a sair desliga o amplificador

Ponto final. O mais mítico clube de rock da cidade de Nova Iorque, palco pequeno do qual nasceram grandes nomes entre os quais os Ramones, Blondie, Patti Smith, Talking Heads ou Television, fecha hoje definitivamente as suas portas. O fim-de-semana de despedida foi contudo, de festa, devolvendo ao clube dois dos nomes de dali sairam para viver carreiras globais. Blondie no sábado. Patti Smith no domingo. Depois, e até 31 de Outubro, data em que Hilly Krystal, o fundador do clube (em 1973), terá de entregar as chaves ao senhorio, a hora será de mudança. Bar, palco e casas de banho serão desmontadas. Para brevemente reaparecerem em segunda vida em Las Vegas, onde um “novo” CBGB deverá surgir, em data por revelar. As razões por trás desta indefinição, bem como da inexistência de uma decisão sobre um eventual futuro num outro local em Manhattan prendem-se com o delicado estado de saúde de Hilly Krystal, a quem um tumor foi diagnosticado recentemente.
Em Nova Iorque ficará, contudo, uma loja de merchandise (que até aqui se vendia na porta ao lado, o CB’s Gallery). A nova loja CBGB Fashions, abre a 1 de Novembro na Broadway, no cruzamento com a Bond Street. ~


Tempo, então, para uma derradeira visita. Entramos num pequeno vestibulo, à direita duas secretárias (a da frente a de Hilly Krystal) cada qual de computador instalado, um pequeno televisor a meia altura numa das paredes. Papelada, muita. E logo ali as paredes cobertas de flyers, autocolantes e graffitis, uns sobre os outros, amontoado de caos de nomes de bandas e logotipos que contam histórias de música que por ali passou. Uma estreita passagem do lado esquerdo do vestíbulo dá então acesso à sala principal. Bar do lado direito, longo, estrutura de madeira, apinhado de gente toda a noite. Do lado esquerdo, degraus para uma plataforma elevada, cadeiras e mesas em conversas possíveis quando a música fala mais baixo. Por todo o lado, mais intensa que no vestíbulo, a colagem de velhos flyers e graffitis conta histórias e dá personalidade à casa que, na essência, lembra um Johnny Guitar um pouco mais comprido. Ao fundo, um palco de tábuas poucos centímetros do chão, uma proximidade inevitável entre quem toca e quem vê. Uma bateria, microfones, colunas penduradas a meia altura nas paredes, outras levantando-se do chão. Palco pequeno, de facto, pouco espaço para movimentos, mas muita história e vida ali feita. Ao lado, as históricas casas de banho, decadência em regime de sujidade rock’n’roll, tão mítica que foi já citada em canções e relatada em entrevistas.
É este o CBGB, casa de referência na alma de Nova Iorque, maternidade do punk rock, paragem incontornável em qualquer romaria à baixa de Manhattan. E raros devem ser os turistas, com rock’n’roll na guelra, que de passagem pela cidade, não tenham tirado a foto “à Ramones” frente ao número 315 da Bowery, com visita também certa, na porta ao lado, ao CB’s Gallery, bar diurno e galeria de arte onde também se vende o merchandise oficial CBGB. Uma foto que dentro de um 15 dias terá o sabor a relíquia como as que, outros, tenham, eventualmente tirado junto do velho Marquee londrino ou do Rock Rendez Vous lisboeta...

Patti Smith, Talking Heads, Ramones, Blondie, Television, Suicide, Richard Hell... Todos eles nasceram publicamente naquele pequeno palco. No mesmo clube que, há um ano, viu chegar ao fim o contrato de aluguer do espaço que ocupa no número 315 da Bowery, sem sinal de vontade do senhorio (o Bowery Resident’s Comitee) em renovar o acordo, dado o acumular de três anos de renda por pagar. Nova Iorque perde definitivamente um espaço de referência, apontado até pela Municipal Arts Society como candidato a um processo de inscrição como património da cidade, paredes “imundas” tidas como marcas da vivência cultural que ali se respirou desde os anos 70. No seu site , a associação chegou mesmo a comparar a importância histórica e cultural do CBGB ao histórico Plaza Hotel, na esquina da 5ª Avenida com o Central Park.
Começou então a falar-se dos interesses de um investidor no Nevada. Mais tarde, até foi noticiada eventual hipótese londrina... Kristal, todavia, defendeu sempre, e com paixão, a prioridade de uma solução em Nova Iorque, pedindo a renovação do contrato de arrendamento por mais 12 anos e uma mais atenta dedicação do senhorio ao edifício. Consciente da importância do clube como ícone cultural de Nova Iorque e como destino turístico, Kristal apostou numa pronta acção da cidade e dos vizinhos no Lower East Side para que o histórico clube não se transforme numa memória. Numa carta aberta à cidade e aos seus responsáveis, explicou em 2005 que a situação do clube não estava em negociação. Estava, sim, nas mãos de um juiz que tomaria a decisão sobre o seu eventual futuro como parte da vida cultural da zona Sul de Manhattan. E pedia a cada “amigo” que enviasse um email “educado” ao mayor Bloomberg, desafiando-o a confessar se estaria preparado para dizer que o clube poderia ser fechado “porque não pode pagar uma renda de 40 a 50 mil dólares por mês a uma associação sem fins lucrativos que é financeiramente apoiada pela cidade, estado e governo federal, com cerca de 23 milhões de dólares por ano”.

O dono do clube dizia então em entrevistas e noticiários que se recusava a abandonar o local. Continuou a agendar espectáculos para as semanas seguintes e pediu uma reunião com Michael Bloomberg, na sequência deste último ter a dada altura expressado o seu interesse pelo caso, com vontade em mediar o diferendo, e declarando que o clube é “uma grande instituição de Nova Iorque” e que “faz parte da nossa cultura”.
No site oficial do clube foi aberta então uma zona dedicada à campanha “Save CBGB” na qual se apresentaram textos explicativos, petições online e acções concretas. Um dos textos vincava precisamente o carácter não lucrativo da associação que alugava o espaço ao clube, e afirma que “o Bowery Resident’s Comitee é uma associação de caridade não lucrativa quase exclusivamente apoiada pela cidade e estado, e seria inapropriado ver o dinheiro dos contribuintes ser usado para apagar este importante marco nova-iorquino”.
Uma série de concertos destinados a recolher fundos ocuparam a sala em muitas noites do Verão do ano passado. E a 31 de Agosto de 2005 data-limite para a decisão do tribunal, uma série de bandas juntou-se na não muito distante Washington Square, largo de importância histórica na vida boémia do Village e sede de concertos históricos na década de 60. Chegou também a correr o rumor de um eventual concerto de recolha de fundos com elementos dos Ramones, prontamente desmentido pelos próprios. Entre as muitas mais acções então pensadas para divulgar a situação do clube e a lutar pela sua sobrevivência contou-se a edição, em Junho do ano passado uma fotobiografia do CBGB com introdução assinada por Hilly Kristal e com um texto da autoria de David Byrne.



PS. Colagem, editada, de textos originalmente publicados no DN.

As fotos do CBGB usadas neste post não podem ser reproduzidas sem autorização

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sábado, outubro 14, 2006

White... stripes?

Mais uma dose de French And Saunders. Uma “rapidinha” desta vez, em paródia aos White Stripes, num registo semelhante ao que já usaram para encenar a história da dança... A Meg, versão Dawn French, é genial...

160 Love Pages

Mais um título obrigatório na série 33 1/3. Com 160 páginas (ou seja, em dose reforçada de leitura), L.D. Beghtol serve, a partir de 15 de Dezembro, uma série de olhares, histórias e opiniões sobre o genial 69 Love Songs, dos Magnetic Fields. O livro, segundo as notas de promoção disponíveis, deverá documentar o espaço onde o disco nasceu com visões próximas do seu criador. Conterá citações, notas de rodapé e as histórias secretas das canções contadas pelos participantes no disco, por fãs, por imitadores e mesmo detractores... Inclui anedotas, um glossário e notas tiradas durante os concertos em Londres e Nova Iorque na digressão que acompanhou o lançamento do triplo álbum (precisamente a que nos visitou em inesquecível noite no CCB). Fala-se ainda em imagens e memorabillia... Ou seja, um disco de excepção com direito a um livro de excepção.

PS. Más notícias, entretanto, para os que esperam a publicação do livro sobre Loveless, dos My Bloody Valentine, também nesta colecção. O autor resolveu rever o texto mais uma vez, adiando a edição para algures em 2007...

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Nova Iorque, cidade rock'n'roll (4)

Ao contrário do que o editorial da Punk poderia sugerir, o punk não nasceu como reacção ao disco sound mas, antes, como manifestação libertária de talentos de rua contra o panorama de uma indústria musical dominada pelos excessos e estrelas de monumentos quase hollywoodescos feitos em torno das estrelas hard rock e progressivas então instaladas no topo das tabelas de vendas e nos palcos mais caros. Na verdade, como o punk, o disco também nascera de uma manifestação de rebeldia e liberdade, todavia em caves para luzes e bolas de espelhos, banda sonora para os novos hábitos de vida em discotecas, escapadelas nocturnas para orçamentos reduzidos que cresciam na Nova Iorque de meados de 70, inicialmente entre guetos e minorias (negros, latinos e homossexuais), mais tarde feita fenómeno mainstream. Para a massificação do fenómeno disco muito contribuiu a explosão editorial na área (que se sucedeu aos primeiros êxitos) como o impacte global de Febre de Sábado À Noite, filme que transformou o hedonismo para horas vagas nas noites de sábado de um cidadão comum nova iorquino num desejo popular.
Musicalmente o disco foi uma evolução de linhas soul de inícios de 70, juntando-lhes arranjos luxuriantes para cordas, mais tarde electrónicas, um ritmo insistente e uma sugestiva carga sexual, fundamental em ementa para servir corpos noctívagos em movimento. Entre os muitos militantes de um género que conheceu importante protagonismo de divas como Donna Summer, Thelma Houston ou Gloria Gaynor, os que mais se destacaram foram os nova iorquinos Chic, formados em 1977 sob a direcção de Nile Rodgers (natural da cidade e em tempos ligado à banda do Apollo Theater) e Bernard Edwards. Rogers tornar-se-ia depois um dos mais disputados produtores da cidade, trabalhando com nomes como as Sister Sledge (outro fenómeno disco), Diana Ross, Duran Duran ou Madonna, esta revelando no seu álbum de estreia, em 1983, uma das mais evidentes heranças destes tempos de festa e dança nas noites de Manhattan.
Em Nova Iorque a euforia disco ultrapassou a oferta e manifestou-se no consumo, com vasta dose de discotecas para todos os públicos e orçamentos, a mais notória das quais o mítico Studio 54, paragem nocturna obrigatória da multidão in, seleccionada por uma draconiana política de porteiro. Lá estavam, frequentemente, Warhol, Grace Jones (modelo feita pop star em Nova Iorque), Calvin Klein, Karl Lagerfeld e Debbie Harry, esta nascida em berço punk e seduzida pelo apelo festivo do disco, como se escutou em Heart Of Glass, o maior êxito dos Blondie.

Ao mesmo tempo que o disco crescia de fenómeno underground para se instalar no mainstream (e acabar afogado por sub-produtos que lhe deram tão mau nome que levou 20 anos a limpar), o punk dava lugar a algumas histórias caricatas (como a decadente passagem do casal Sid e Nancy pelo Chelsea Hotel) e a descendências diversas, ora mais melodistas, ora mais experimentalistas. Sob a designação new wave (como no Reino Unido), uma geração de bandas inicialmente ligadas ao intenso movimento libertador do punk ensopou-se em melodia e carga rítmica e gerou alguns dos mais marcantes acontecimentos que a cidade conheceu na recta final de 70. Uma vez mais o Lower East Side esteve na berlinda, albergando o nascimento e afirmação de nomes como os Talking Heads, B-52’s (da Geórgia, mas visitantes dos bares nova iorquinos em concertos de fim-de-semana), Nervus Rex, Jonathan Richman e os seus Modern Lovers e os Cars.
Mais próximo dos ideários punk, o movimento que ficou conhecido como no-wave viveu curta mas marcante vida na Nova Iorque na transição de 70 para 80, reactivando um velho hábito pop da cidade: o cruzamento da cultura popular com o mundo das artes de vanguarda, abrindo vias de contacto para com a cena jazz que crescia nos sótãos do Lower East Side, a música contemporânea e o funk. A no-wave retomou a anarquia e energia dos primórdios do punk, rejeitando a previsibilidade melodista da new wave e a estrutura lírica convencional do rock’n’roll e teve em Lydia Lunch uma das suas mais interessantes criadoras, nos Sonic Youth a sua mais importante e duradoura manifestação e nos Liquid Liquid e ESG as suas mais estimulantes derivações sob arquitectura funk. Importante documento da época, a compilação No New York, produzida em 1979 por Brian Eno peça de referência neste departamento.

O reencontro de verdades mais próximas das artes de vanguarda e o gosto pela experimentação estimulado pela no-wave dominou algumas das mais interessantes manifestações nova iorquinas de 80, a década onde o mercado desviou os olheiros de novas estrelas para outras bandas mas a criatividade não mudou de casa. Uma das grandes revelações de 80, Laurie Anderson, surgiu em terreno habitualmente corrido por compositores como Philip Glass ou Steve Reich, tocando inclusivamente no jardim das estátuas do MoMA, um dos mais selectos palcos de vanguarda da cidade, partindo de pistas minimalistas e de uma relação carnal com o violino e um gosto pelo discurso falado para edificar uma obra assombrosa que ainda hoje procura o desafio. Com carreira invulgar desde inícios de 70, juntando linguagens da música erudita contemporânea a expressões populares (da canção pop à música nativa), Moondog é outra das grandes figuras “marginais” da cidade. Tocava frequentemente na rua, frequentemente na 6ª Avenida, entre as ruas 52 e 56 (a esquina da sexta com a rua 54 ficou conhecida como Moondog Corner). Os ousados The Swans, Louge Lizards ou o versátil colectivo Golden Palominos documentam algumas das mais activas e inventivas forças da Nova Iorque “alternativa” de 80. Suzanne Vega foi uma das raras manifestações em registo clássico da época, revelada como uma das grandes trovadoras e cronistas das ruas da cidade em 80. Mais que o ex-colega Lou Reed, John Cale, que se manteve ligado à cidade, protagonizou ainda importante obra nos dias de 70 e 80. Ambos juntaram-se para pontual trégua em 1990 sob homenagem a Warhol no magnífico Songs For Drella. (continua amanhã)



PS. Este texto foi originalmente publicado no DNmúsica em Agosto de 2005

Fotos:
1. Movimento noite dentro na Broadway, em Times Square
2. O Chelsea Hotel, na rua 23
3. O Jardim das Estátuas no MoMA

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