terça-feira, fevereiro 28, 2006

Toby e Stanley, aliás Bree

Chama-se Transamerica e é um filme, no mínimo, inesperado... E que dois espantosos actores! Felicity Huffman (candidata ao Oscar de melhor actriz) comete a proeza de representar um transsexual — um homem, Stanley, que vai fazer uma operação para se tornar uma mulher, Bree — sem nunca empurrar a sua personagem para qualquer dimensão "panfletária" ou "moralista", antes fazendo-a viver como um ser humano de infinita complexidade afectiva. Kevin Zegers interpreta Toby, o filho de Stanley/Bree, um jovem delinquente que, para além da sua agravada solidão, não sabe como lidar com o pai/mãe que ignorava a sua própria existência. E se é verdade que Huffman é sublime, não é menos verdade que a excelência de Zegers tem sido "esquecida" pela avalancha mediática dos Oscars em que o filme, inevitavelmente, surge inscrito.
Com uma notável desenvoltura realista — a fazer lembrar alguns elementos do clássico realismo britânico —, Transamerica é muito mais do que uma abordagem "didáctica" de um tema "difícil". Assinado pelo estreante Duncan Tucker (um homem com um espantoso sentido pragmático, bem expresso numa entrevista na Minnesota Public Radio), trata-se acima de tudo de um brilhante exercício de reconversão das regras clássicas do melodrama, agora contaminadas por uma fascinante dimensão on the road.
Um filme, enfim, para superar os maniqueísmos mais paralisantes, ou mais moralistas, sobre género e transgénero. Na certeza de que Transamerica tende para uma desconcertante e criativa moral: a de que, para além da história sexual de cada indivíduo, a América é feita de cidadãos que são, todos eles, meio-judeu, meio-índio ou meio-qualquer-outra-coisa — uma América, enfim, de permanentes trans-figurações.

* Super 16: Transamerica é um caso exemplar de utilização do formato Super 16 (depois ampliado para 35 mm): para além de favorecer uma invulgar agilidade de filmagens, trata-se também de um formato que permite significativas economias — o orçamento foi de apenas 1 milhão de dólares (fonte: iMDB), cerca de 850 mil euros, isto é, menos que alguns títulos da produção portuguesa.

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Banda sonora: as canções de Transamerica vão desde um original de Dolly Parton (Travellin' Thru, com nomeação para o Oscar de melhor canção) até ao revivalismo folk dos Old Crow Medicine Show; a parte instrumental tem assinatura de David Mansfield, veterano do rock que, nos anos 70, integrou a lendária Alpha Band.

* Weinstein: Este é um dos primeiros títulos lançados pela Weinstein Company, fundada pelos irmãos Bob e Harvey Weinstein depois da sua saída da Miramax — um eventual Oscar para Felicity Huffman corresponderia a uma reentrada triunfal nas esferas de poder de Hollywood.